No dia 25 de março de 2017 foi realizada a oficina “Convivência Comunitária: Apadrinhamento Afetivo e Outras Possibilidades”, que contou com a participação da psicóloga e professora da PUC-SP, Maria de Lourdes Trassi Teixeira e da psicóloga e coordenadora do Programa Apadrinhamento Afetivo do Instituto Fazendo História (IFH), Mônica Vidiz.
A Professora Maria de Lourdes iniciou a apresentação mencionando o fato do apadrinhamento afetivo ser uma prática antiga no Brasil, sendo que nas décadas de 1970 e 1980 algumas organizações internacionais, basicamente americanas, enviavam recursos financeiros para o “apadrinhamento” das instituições da época. Atualmente muitos serviços de acolhimento continuam tendo programas que visam o apadrinhamento dos acolhidos, sendo comum a doação de sacolas de Natal e de outros bens materiais ao longo do ano. Nesta perspectiva, as pessoas envolvidas são anônimas para as crianças e adolescentes, não existindo um compromisso direto com eles. A Profa. postulou ainda que nessas ações, é comum que o apadrinhamento esteja ancorado na concepção de que a criança e o adolescente são seres “carentes”, “despossuídos”, não sendo compreendidos enquanto sujeitos de direitos.
Mas, o que é então o apadrinhamento afetivo? Para a Profa. Maria de Lordes, é um encontro humano, sendo importante o desenvolvimento de um vínculo entre o acolhido e a pessoa que se dispõe a apadrinhar. O vínculo é aqui entendido como uma troca afetiva que torna o outro alguém significativo na vida. A característica do vínculo é a reciprocidade, sendo um processo construído por meio da convivência. A importância do vínculo está em sua carga afetiva, sendo importante que haja a disponibilidade dos envolvidos de que a pessoa possa ocupar um lugar em sua vida (lugar este objetivo e subjetivo). No apadrinhamento afetivo, é importante considerar que como qualquer relação humana, pode haver raiva, disputa e dificuldades no relacionamento. Quanto maior a intimidade, maior a chance de haver uma expressão espontânea dos afetos. Com o tempo, o padrinho ou madrinha afetivo/afetiva vai se transformando em um adulto significativo para a criança e adolescente, tonando-se uma figura de referência para o cuidado e segurança, podendo representar uma experiência de reparação.
É importante considerar ainda que há diferenças entre as crianças e os adolescentes neste processo - muitas vezes o/a adolescente manterá uma relação de desconfiança, precisando vencer as resistências internas. Além disso, a/o adolescente pode mostrar-se ambivalente em uma nova relação, podendo ter medo de se apegar e ter uma nova decepção. Porém, tanto para o adolescente quanto para a criança, não se deve compreender a constituição da subjetividade a partir unicamente das experiências na família ou no abrigo. A constituição subjetiva é uma amalgama de todas as relações e interferências gerais da sociedade e cultura, incluindo os meios de comunicação.
A relação que o padrinho afetivo estabelece com o acolhido deve estar pautada na disponibilidade de estabelecer novos vínculos e ter uma perspectiva de uma relação duradoura. É importante, porém, tomar cuidado para não idealizar esta “disponibilidade”, pois pode haver mudanças na vida e outros eventos que acabem interrompendo o contato entre o padrinho e o acolhido. É importante demarcar que as relações significativas existem além da presença física por meio das memórias, lembranças e representações.
A oficina seguiu com a apresentação do Programa Apadrinhamento Afetivo pela coordenadora Mônica Vidiz. Ela iniciou a fala esclarecendo que há muitos receios envolvidos em um programa de apadrinhamento. Os riscos existem e é importante alinhar expectativas e construir estratégias, compreendendo que não há garantias. É importante compreender que a participação comunitária vale para os dois lados, não apenas para as crianças e adolescentes. Também é importante descolar de um modelo engessado de relacionamento, que vá além dos lugares paternos e maternos, apostando que outros relacionamentos também podem ser potentes para os acolhidos.
Segundo Mônica, o direito à convivência comunitária está pautado no Art. 4º do ECA que estabelece que:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Além do ECA, o Plano Nacional de Convivência Família e Comunitária (PNCFC) de 2006 estabelece que:
Quando necessário, o Estado é responsável pela proteção das crianças e adolescentes, incluindo o desenvolvimento de programas, projetos e estratégias que levem à CONSTITUIÇÃO DE NOVOS VÍNCULOS FAMILIARES E COMUNITÁRIOS, priorizando o RESGATE DOS VÍNCULOS ORIGINAIS ou, em caso de sua impossibilidade, propiciando políticas públicas para a formação de novos vínculos que garantam o DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA.
Já as Orientações Técnicas (OT) de 2009 postula que:
Crianças e adolescentes devem PARTICIPAR DA VIDA DIÁRIA DA COMUNIDADE e ter a oportunidade de CONSTRUIR LAÇOS DE AFETIVIDADE SIGNIFICATIVOS.
No convívio comunitário devem ser vivenciadas EXPERIÊNCIAS INDIVIDUALIZADAS.
O contato direto de pessoas da comunidade com crianças e adolescentes em serviços de acolhimento, deve ser PRECEDIDO DE PREPARAÇÃO, visando assegurar que seja BENÉFICO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES.
Para Mônica, ser padrinho ou madrinha afetivo(a) é tornar-se uma referência afetiva para uma criança ou adolescente de forma consistente e comprometida, podendo estar sempre presente, conviver e colaborar com o processo de desenvolvimento daquele indivíduo. Há diversas razões pelas quais as pessoas decidem apadrinhar um acolhido, mas é importante que haja clareza, consistência e comprometimento em relação ao apadrinhado. A relação é voluntária, mas tem que existir uma troca afetiva e um entendimento de que a relação de troca vale para os dois lados.
Quanto ao Programa de Apadrinhamento do Instituto Fazendo História, a psicóloga esclareceu que o objetivo geral é proporcionar às crianças e adolescentes a vivência de vínculos afetivos individualizados e duradouros e a ampliação de suas experiências sociais, culturais e de convivência familiar. Os objetivos específicos do programa são: 1) ampliar a rede de apoio afetivo e comunitário, 2) fortalecer o desenvolvimento integral, 3) favorecer a construção da autonomia e de um projeto de vida, 4) possibilitar experiências de convivência familiar, 5) fomentar a continuidade e permanência dos laços estabelecidos na relação entre as crianças e adolescentes e os padrinhos e madrinhas. O programa é voltado para crianças e adolescentes entre 7 e 17 anos que tenham chances remotas de retorno familiar ou adoção. O Apadrinhamento acontece desde julho de 2015 e até hoje contou com 66 crianças e adolescentes, 74 padrinhos e madrinhas, 10 serviços de acolhimento e 4 Varas da Infância e da Juventude.
A coordenadora ainda destacou a metodologia do programa que envolve um processo inicial de preparação e seleção de interessados para participarem do apadrinhamento. Esta primeira fase é constituída por uma palestra para os interessados conhecerem o Apadrinhamento Afetivo e avaliarem se têm disponibilidade e interesse em permanecer. Posteriormente ainda são realizados encontros com subgrupos, um cadastro e uma carta de interesse até iniciar um ciclo de qualificação para o próprio apadrinhamento. Este segundo momento de qualificação é composto de seis encontros para depois haver três encontros lúdicos com as crianças e adolescentes envolvidos no programa. Todo o processo é gradual e a escolha da madrinha/padrinho e da criança/adolescente é estabelecida por um pareamento que ocorre ao longo dos encontros pela empatia que passa a existir entre a dupla. Após este processo, a pessoa começa a frequentar o abrigo e posteriormente realizar passeios e atividades externas com as crianças e adolescentes, sendo que a equipe do IFH permanece acompanhando todos os envolvidos por meio de reuniões mensais com os padrinhos/madrinhas e rodas de conversa bimestrais com as crianças e adolescentes.
Dentre as conquistas identificadas até o momento estão: a possibilidade de vínculos significativos, um olhar mais individualizado para as crianças/adolescentes, a participação ativa do padrinho/madrinha na vida do acolhido e a possibilidade de manutenção dos vínculos estabelecidos ainda que haja o desacolhimento. Entre os desafios, ainda há os casos que não dão certo (alguns padrinhos não conseguem lidar com a própria impotência, por exemplo); algumas equipes dos abrigos acabam se incomodando com o nível de participação dos padrinhos, acreditando que estão se metendo no trabalho dos profissionais do serviço de acolhimento; casos em que houve o retorno familiar e não houve a continuidade do apadrinhamento; o fato de algumas crianças carregarem consigo modelos de relação em que não conseguem dar espaço para novas relações afetivas, entre outros.
No segundo momento da oficina houve a discussão de perguntas norteadoras para cinco subgrupos composto por até 15 pessoas e ao final todos os grupos expuseram os pontos debatidos e formularam perguntas para as palestrantes.
Aqui estão os vídeos da oficina (que foi gravada na íntegra):