No dia 19 de abril de 2023, o Instituto Fazendo História realizou a primeira oficina presencial do Projeto Capacitação em Serviços de Acolhimento, com o apoio do FUMCAD (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente), no Instituto Pólis, centro da cidade de São Paulo. Com o tema “A relação com o sistema judiciário: caminhos na efetivação de direitos”, o encontro foi direcionado aos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento Institucional, Familiar, Rede Socioassistencial e do Sistema de Garantia de Direitos.
A oficina contou com a participação de Eliana Kawata, psicóloga judiciária chefe do Setor de Psicologia da Vara Central da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de SP, graduada pela USP/SP, mestre em Psicologia Social pela PUC/SP e especialista na área de Violência Doméstica contra crianças e adolescentes pelo Laboratório de Estudos da Criança da USP/SP; e também de Gracielle Feitosa de Loiola, mestre e Doutora em Serviço Social pela PUC-SP, com exercício profissional nas áreas da assistência social e judiciária, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças e Adolescentes - NCA/SGD e autora do livro Produção sociojurídica de famílias "incapazes": do discurso da "não aderência" ao direito à proteção social, pela editora CRV (2020).
Em um primeiro momento, Eliana apresenta um panorama do sistema de justiça, partindo de um breve histórico, no qual percorre desde a Doutrina da Situação Irregular, que controlava a situação de crianças e adolescentes em situação de pobreza ou que haviam cometido atos infracionais, considerando estes como menores e meros objetos do estado. Ela indica a Constituição federal (1988), a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - 1990) como marcos que instauram a Doutrina de Proteção Integral, quando se passa a considerar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e a garantia desses direitos como prioridade absoluta, a ser assegurada pela família, estado e sociedade.
Eliana também traz matérias jornalísticas publicadas ao longo das décadas, assim como pesquisas, para marcar a visão que se tinha das crianças e adolescentes em situação de acolhimento, como geradores de sua marginalidade e culpados pelas violências que sofriam, contrapondo com a que deve prevalecer cada vez mais no trabalho com esse público, na qual não podem ser responsabilizados, sendo o fracasso da sociedade e do estado. A partir daí, pontua uma série de condições que precisam ser garantidas para o rompimento de uma cultura de institucionalização rumo à cultura de garantia de direitos, dentre elas, o fortalecimento da família e sua inclusão em políticas públicas como primeira resposta às situações de vulnerabilidade ou risco, o caráter excepcional e provisório da medida de acolhimento, o respeito à história e à individualidade de cada criança e a convivência comunitária como direito.
Pautada pelo ECA, a especialista apresenta dados e ações que precisam ser conhecidos pelas equipes dos serviços de acolhimento na sustentação de seu trabalho e nos posicionamentos necessários enquanto parte da rede, tais quais, como deve funcionar a política de atendimento, os eixos que compõem o sistema de garantia de direitos, quem são os atores que integram o sistema judiciário e suas funções e quais os princípios devem nortear a aplicação da medida protetiva. Ela indica o papel primordial do judiciário de julgamento e decisão de cada caso, mas, ao mesmo tempo, enfatiza a importância do estudo diagnóstico com envolvimento de toda rede, avaliando riscos para a criança ou adolescente e quais as condições e potencialidades da família para lidar com as suas violações.
Eliana aborda o Plano Individual de Atendimento (PIA) como um dos principais instrumentos, com poder de lei quando homologado pelo judiciário, para o trabalho com a criança ou adolescente em situação de acolhimento. Deve ser construído pela equipe do serviço com a escuta e participação das crianças, adolescentes e famílias, tendo em vista sempre a reintegração familiar, e, em casos específicos, pode também subsidiar quando não tiver mais para onde avançar e se determinar pela adoção. Ela ainda aponta os principais avanços que identifica no sistema judiciário, reforçando uma maior rapidez nos encaminhamentos dos processos, e quais são os desafios, ressaltando a relevância de uma política preventiva, de enfrentamento da pobreza e de participação da sociedade na escolha dos conselheiros tutelares.
Em seguida, Gracielle apresenta como os dados e princípios trazidos por Eliana se materializam no cotidiano, a partir de um caminho provocativo e de narrativas de sujeitos que participaram de suas pesquisas que contribuem para pensar sobre essa realidade. Logo, traz a seguinte provocação: ao construir o PIA será que, de fato, escutamos as pessoas, tensionando o judiciário e pensando medidas de proteção para aquela família, ou apenas naturalizamos histórias e cumprimos um fazer burocrático, seguindo uma perspectiva de punição e moralização?
A especialista, fazendo uso de imagens, convoca os participantes a pensarem qual o lugar do sistema judiciário, ressaltando como, por um lado, se apresenta como uma instituição que deve garantir direitos e, por outro, é marcado por uma linha de responsabilização e punição. E como as demais instituições, onde se incluem os serviços de acolhimento, ficam entre um jogo de tensões, propícias a estabelecer uma relação hierárquica e conservadora, muitas vezes respaldada pelos próprios profissionais desse sistema. Ela traz como esse deve ser um lugar de atenção na atuação profissional e como os serviços não devem trabalhar para o judiciário, assumindo um lugar de subordinação e de subsídio às suas decisões, mas com ele, identificando que sua posição pode ser de discordância e de apresentação de contrapontos. São eles que estão mais próximos das famílias e podem indicar as ausências de proteção do estado, utilizando os relatórios para tensionar e falar por elas, já tão silenciadas.
Ao apresentar trechos de falas de mulheres que participaram de suas pesquisas, muitas com trajetória de rua, de uso de substâncias psicoativas e que tiveram suas vidas judicializadas na maternidade, Gracielle nos desafia a pensar quem são essas famílias e compreender quais as histórias por trás da história, além do tipificado em um discurso de não aderência ao acompanhamento. Aponta como as vivências e valores de quem trabalha com essas famílias podem atravessar o fazer profissional, influenciando na avaliação de sua capacidade protetiva e acabando-se por não questionar questões estruturais mais amplas. Problematizando o uso das palavras vulnerabilidade e negligência, ela traz o perigo de individualizar a questão e responsabilizar as famílias, sem considerar o quanto são vulnerabilizadas, negligenciadas e desprotegidas pelo estado e sem acionar respostas públicas para essas situações.
A especialista também chama a atenção para que a forma como os serviços se posicionam nos relatórios pode virar verdade sobre as famílias que atendem, provocando a pensar como se tem escutado e escrito sobre elas: que parâmetros usamos para medi-las? Que valores e escolhas vão nortear o fazer profissional cotidiano? Devolvemos às famílias o que escrevemos sobre elas? Reforça como as palavras são políticas e revelam sempre uma intenção, de forma que a escrita não pode ser automática e deve expressar e desvendar a realidade vivida pelas famílias, particularizadas por questões de raça, classe e gênero, e suas desproteções. Finaliza abordando como sempre deve estar no horizonte do profissional qual a intencionalidade que o guia, de modo a reforçar uma potência punitivista e fiscalizadora ou uma potência emancipatória e de questionamento, e o cuidado para não cair na responsabilização individual de algo que é estrutural.
Na segunda parte da oficina, os participantes puderam discutir em grupos, e em seguida com a mediação das especialistas, sobre os principais desafios e alternativas que identificam para lidar com as questões na relação com o judiciário no cotidiano.
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