No dia 04 de outubro de 2023, o Instituto Fazendo História realizou a quarta oficina presencial do Projeto Formação Profissional para o Trabalho com Jovens, com o apoio do FUMCAD (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente), no Instituto Pólis. Com o tema “Sexualidade na adolescência: escutas urgentes”, o encontro foi direcionado aos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento e também a outros atores da Rede Socioassistencial e do Sistema de Garantia de Direitos da Cidade de São Paulo.
A oficina contou com a participação de Dandara Gal dos Santos, mulher travesti, negra, gorda, da periferia da Zona Leste de São Paulo, psicóloga clínica, sexóloga e militante. Ela iniciou sua atuação na psicologia no terceiro setor com crianças e adolescentes em vulnerabilidade e hoje trabalha na clínica, especialmente com mulheres, pessoas pretas, gordas e lgbtqiap+, sob as óticas da psicologia decolonial e da terapia analítica junguiana.
Dandara inicia se apresentando e colocando a responsabilidade que é abordar essa temática com os profissionais dos serviços de acolhimento. Ela adianta que fará uma fala provocativa, já que acredita que dificilmente se produz transformação social sem incômodos e sem o questionamento dos sistemas que estão estabelecidos e, ao mesmo tempo, acolhedora, visando a troca e a construção de conhecimentos conjuntos. Em seguida, propõe uma divertida dinâmica de telefone sem fio, estimulando a reflexão na qual, mesmo perto e cochichando no ouvido, esbarramos com dificuldades em, de fato, escutar o outro.
Na primeira parte do encontro, a convidada faz uma proposta de definição de adolescência, como um período de transição entre a infância e a vida adulta, de intensas modificações hormonais, biológicas, psicológicas e sociais e quando, convencionalmente, aflora-se a questão da sexualidade. Ela indica também uma concepção de sexualidade, ao abordá-la como um aspecto central do ser humano e que abrange não só o ato sexual em si, mas também as identidades, os papéis de gênero, a orientação sexual, o erotismo, o prazer, a intimidade e a reprodução. Traz como ela se expressa em nossos pensamentos, desejos, valores, comportamentos e relacionamentos e, para ser compreendida de forma mais singularizada, precisa-se considerar a ideia de interseccionalidade: trata-se da relação entre diferentes características sociais, como gênero, raça e classe, que define que lugares que determinadas identidades podem ocupar socialmente e a quais violências estão submetidas.
A partir da convocação do grupo com perguntas, da exposição de narrativas e de dados de pesquisas e, também, de um exercício no qual todos foram convidados a refletir sobre as suas experiências sexuais, Dandara propõe que olhem para as particularidades da sexualidade na adolescência, especialmente, em situação de acolhimento, quais suas características e diferenças em relação a outras adolescências. Ela reforça, como uma dessas especificidades, o contexto de vulnerabilidades e de muitas rupturas que marcam o processo de desenvolvimento desses adolescentes, onde já foram privados de direitos fundamentais. E abre para a discussão de aspectos, tais quais, a reprodução de discursos machistas e misóginos sobre sexualidade em nossa sociedade, enquadrando homens e mulheres em papéis esperados; o perigo da ideia na qual adolescentes não têm sexualidade, gerando vergonha e dificultando o acesso a informações e espaços de cuidado e prevenção; e a dimensão da responsabilidade dos profissionais acerca daquilo que é dito, partindo de uma escuta que considere o lugar de quem fala e contribuindo com outros caminhos e discursos possíveis, que promovam mais consciência aos adolescentes em relação aos seus próprios corpos.
Em um segundo momento, como forma de sensibilizar para a importância de espaços de escuta quando falamos da sexualidade de adolescentes, Dandara parte de um exercício individual no qual convida os participantes a tocarem e sentirem uma parte do corpo, o que, de modo geral, se perde dentro de um cotidiano atribulado e tomado por cobranças. Aborda a ideia na qual torna-se difícil ouvir o outro, se não nos percebemos antes, acerca de quem somos e o que estamos fazendo em nossas vidas.
Nessa parte da oficina, Dandara levanta algumas questões para os participantes e complementa com dados de seus estudos e conhecimentos. A primeira delas é sobre o problema do silenciamento da sexualidade dos adolescentes, onde se discute a sexualidade como forma primordial de expressão e de estar no mundo, permeando as conversas, afetos e escolhas das pessoas. E como silenciar é contribuir para uma vulnerabilização ainda maior desses adolescentes, gerando impactos, como a quebra de direitos sexuais e reprodutivos, prejuízos na construção da identidade e da autonomia, a busca por fontes de informação ineficientes e deturpadas, que reforçam estereótipos de gênero, maior exposição à violência sexual e uma tendência à repressão da sexualidade do outro.
A convidada também dialoga sobre porque é tão difícil falar sobre sexualidade com os adolescentes, indicando um não-lugar que eles ocupam na sociedade, cheio de conflitos, e que confronta o adulto a encarar sua própria adolescência e a sua relação com a sexualidade, ao trabalhar com eles. Aborda a relevância de se considerar as estruturas de poder postas, como o patriarcado e o capitalismo, a partir de uma perspectiva colonial, moralista e cheia de tabus, que funda nossa sociedade e determina e controla o que é visto como certo e errado, incluindo o que diz respeito às questões de sexualidade e de gênero.
Dandara finaliza apresentando os benefícios de práticas de escuta e da educação sexual com os adolescentes, assim como indicando caminhos possíveis nesse trabalho. Nesse sentido, ela aponta para a importância de superar as concepções morais e religiosas que podem fazer parte da formação do profissional e olhar da perspectiva dos adolescentes, do que faz ou não sentido a eles, e da promoção de espaços de diálogo e escuta, sem imposição. Precisa-se reconhecer que falar de sexualidade é falar também de corpo, interesses, legitimação de desejos, de sonhar outros futuros e, principalmente, de prazer, para que este possa ser vivido de forma saudável e não violenta. Acredita que tudo isso pode contribuir para o desenvolvimento de adolescentes e adultos mais responsáveis consigo e com o outro, fortalecidos em suas identidades e autoestima, conscientes de seus próprios corpos, desejos, limites e da importância do autocuidado, rompendo, inclusive, com ciclos de violência.
Confira o vídeo com a oficina completa: clique aqui.