No dia 14 de dezembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Acompanhamento de adolescentes durante e pós acolhimento: uma experiência na Argentina”, que contou com a participação da especialista Mariana Andrea Incarnato, psicóloga pela Universidade de Buenos Aires, mestre em "Desenho e Gestão de Políticas e Programas Sociais" e fundadora da Associação Civil Doncel e da Rede Latino-Americana de Egressos dos Serviços de Proteção, que hoje tem 12 países membros. Atualmente, Mariana é consultora de várias organizações como UNICEF e assessora o legislativo da Cidade de Buenos Aires. Para acompanhá-la, realizando a tradução simultânea, tivemos também a presença do tradutor Victor Barrionuevo.

Mariana organiza a sua fala em dois momentos. Primeiro, apresenta a Política Pública da Argentina relativa ao acompanhamento do processo de saída dos adolescentes dos serviços de acolhimento, estruturada pela Lei Federal de Acompanhamento de Egressos. Para fundamentar o seu relato, traz um vídeo que indica como essa lei, regulamentada em 2017, a partir de ampla mobilização e participação da sociedade civil, é a primeira na América Latina que reconhece o direito dos adolescentes em situação de acolhimento de serem acompanhados em sua transição para a vida adulta, sendo parte da política de cuidado. É dividida em duas etapas: a de preparação para a saída do serviço, que tem início aos 13 anos e pode se manter pelo tempo que o adolescente precisar desse suporte; e uma segunda, a partir dos 18 anos, que inclui o apoio econômico de 80% de um salário mínimo para aqueles que estiveram há pelo menos 6 meses no acolhimento, contribuindo para sua estabilidade, frente a uma situação de fragilidade inerente a esse período.

Além disso, a especialista aborda, como parte dessa política, a existência de pessoas referentes, escolhidas pelos adolescentes, os acompanhando nessa fase de transição e que, para tal, passam por um percurso de formação e de certificação pelo Estado que garanta as habilidades necessárias ao exercício dessa função. Esse processo é mediado por um instrumento denominado Plano de Trabalho para o Egresso, o qual contempla diferentes dimensões, como educação, família, identidade, emprego e moradia, e permite ao referente estruturar junto ao jovem um percurso singular de acompanhamento, indicando qual o ponto de partida e suas prioridades.

Em seguida, Mariana atenta para a particularidade do processo de aprovação dessa lei, tendo como eixo protagônico a reflexão e a mobilização de jovens que já haviam passado pela situação de acolhimento e destacando a questão de seu acompanhamento como um problema real a ser enfrentado pela sociedade. Ela aborda que hoje, cerca de 3200 jovens argentinos participam do Programa de Acompanhamento para o Egresso (PAE), com apoio econômico e emocional por parte do estado em seu processo de transição, e aponta três aspectos principais levantados pelos participantes, quando indagados sobre sua relevância: importância de um marco simbólico de continuidade após o acolhimento; existência de um apoio financeiro singular em relação aos outros que o jovem pode buscar para compor sua renda e garantir condições mínimas de estabilidade; e a possibilidade de continuar estudando a partir desse suporte, o que pode implicar em maiores oportunidades de emprego no futuro.

A especialista também problematiza as dificuldades que identifica em relação à implementação dessa política na Argentina, que passam pela lentidão dos estados na compreensão acerca do que se trata o programa, pela formação de recursos humanos qualificados e pelo fato de o jovem precisar ainda ser intermediado por um terceiro para o seu ingresso.  Ela traz como pano de fundo dessas questões a trajetória de longa institucionalização que marca o trabalho com esses adolescentes na América Latina, vinculada ao modo histórico de cuidado da infância e da adolescência que, de maneira geral, não reconhece o processo de autonomia progressiva. Frente a tudo isso, ela salienta a relevância dessa lei como um marco, intervindo na forma de olhar para a política de proteção integral e ampliando a garantia de direitos.

Em um segundo momento de sua apresentação, Mariana compartilha algumas reflexões que vem desenvolvendo ao longo desses anos em torno dos desafios em relação à tensão entre a autonomia progressiva e a proteção integral.  Ela traz como, dentro do acolhimento, os dispositivos institucionais criados para garantir a proteção das crianças e adolescentes, impregnados pelas responsabilidades legais e pela cultura, podem, muitas vezes, atentar contra a autonomia progressiva, ou seja, seu modo singular de inscrever a sua biografia e poder crescer com direitos. E organiza a exposição a partir de 10 elementos apontados como desafios aos trabalhadores na área do acolhimento e que indicam caminhos para se pensar nessas questões:

 

1) As crianças e adolescentes tomam decisões, mas não são totalmente responsáveis por elas. Muitas dessas decisões fazem parte do percurso de poder entender ou vivenciar algo pela primeira vez e a importância da proteção está justamente em garantir que eles possam errar, cometer seus equívocos.

2) A liberdade é um direito humano primordial. São nas pequenas práticas do cotidiano que as crianças e adolescentes podem exercitar as liberdades individuais, seja tomando decisões, seja tendo oportunidades para que encontrem seus gostos, interesses e possam experimentar diferentes situações. Para o adolescente, saber que tem a liberdade de ir embora, muitas vezes, é a condição para que ele fique em um serviço.

3) Autonomia progressiva é tentar, tentar e tentar outra vez na vida cotidiana. A autonomia progressiva precisa ser experienciada na prática e os espaços das instituições devem estar habilitados para tal, para que possam, por exemplo, escolher sua comida ou a roupa que vão usar.

4) Cada sujeito desenvolve a autonomia progressiva segundo seu crescimento, de modo único, e assim também serão suas transições. A autonomia está relacionada à capacidade do sujeito de tomar conta de seus atos e suas consequências, também antecipando-as, o que se dá a partir de um percurso próprio em relação à sua identidade.

5) Não existe a autonomia progressiva, existem as experiências para o exercício da autonomia progressiva. À criança e ao adolescente precisam ser dadas as oportunidades para estar no mundo, tomando decisões e se responsabilizando por elas, de acordo com os períodos de desenvolvimento, o que não pode acontecer apenas aos 17 anos, quando o adolescente está prestes a sair do serviço.

6) O acesso à informação e o uso da tecnologia são direitos. Um grande dilema que se coloca aos trabalhadores dos Serviços de Acolhimento é como cuidar dos vínculos pelas tecnologias virtuais, administrando o seu uso e informando em relação aos riscos presentes nas plataformas.

7) Olhar e observar as crianças e os adolescentes em suas trajetórias de vida significa estar disponível. O lugar de um referente estável deve se pautar a partir de três perguntas: Você precisa de ajuda? Como posso te ajudar?  Você quer que alguma outra pessoa te ajude?

8) Ter amigos e compartilhar com outras crianças e adolescentes do acolhimento, mas principalmente de fora dos serviços. É muito significativo às crianças e adolescentes construírem vínculos reais com pares e não intermediados pelo saber técnico, até para que lidem com os desafios em relação às experiências de ruptura.

9) Não supor nem dar por certo o que a criança ou o adolescente sente ou pensa sobre si mesmo, sobre você ou sobre o acolhimento. É um direito da criança e do adolescente serem perguntados sobre como avaliam o cuidado a eles ofertado, garantindo que a possibilidade de participação seja um processo de longa duração, que começa na infância, relacionado ao dar a palavra.

10) Todas as crianças e adolescentes que sofrem querem resolver seus problemas e pensam sobre isso. O desafio está na geração de ferramentas para que sejam escutados, a partir de espaços de apoio para que pensem, construam e compartilhem seus pontos de vista e, assim, participem de forma significativa e segura na reforma do sistema.

Mariana finaliza a sua apresentação reforçando que, nesse momento que vivemos, a reforma do sistema de cuidado se torna urgente e que os resultados negativos de hoje estão vinculados ao fato de as palavras das crianças e adolescentes terem ficado de fora das discussões e das decisões. E aponta como, nesse percurso de mudanças, é preciso dar espaço à reparação de danos, “reformando o sistema para frente, mas também para trás”: é necessário reconhecer o que foi feito de errado e reparar as pessoas que viveram muitas situações de injustiças e violências por conta de um sistema gerado por nós mesmos.

Após a fala de Mariana, os participantes da oficina puderam dialogar com a especialista, trazendo questões e compartilhando o que acharam e o que pensaram, a partir de suas experiências com a temática e dentro do contexto brasileiro.

Para assistir ao vídeo com a a gravação completa da oficina, clique aqui.