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OFICINA - RELAÇÕES RACIAIS E O ACOLHIMENTO DE ADOLESCENTES

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OFICINA - RELAÇÕES RACIAIS E O ACOLHIMENTO DE ADOLESCENTES

No dia 31 de julho de 2024, o Instituto Fazendo História realizou a décima oficina presencial do Projeto Formação Profissional para o Trabalho com Jovens, com o apoio do FUMCAD (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente), no Instituto Pólis. Com o tema "Relações raciais e o acolhimento de adolescentes", o encontro foi direcionado aos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento e também a outros atores da Rede Socioassistencial e do Sistema de Garantia de Direitos da cidade de São Paulo.

Convidamos Paulo Bueno, psicanalista, psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social. Paulo também colaborou com o Instituto AMMA Psique & Negritude de 2020 a 2021 e é autor de Coisas que o Pedro me ensina: crônicas de uma paternidade.

Paulo iniciou o encontro com os questionamentos: Como pensar as relações raciais na adolescência no contexto do acolhimento institucional? E como podemos desenvolver uma prática em Serviços de Acolhimento que possa ser identificada como antirracista?

Para refletir sobre uma prática antirracista, Paulo convidou todos a pensar sobre o que é o racismo, apresentando os elementos que compõem essa violência.

O racismo pressupõe a presença de três elementos. O primeiro é a construção da diferença. Para se falar de racismo, é necessário considerar a diferença como uma construção histórica. Não se trata apenas de constatação, mas de uma diferença específica em caracteres raciais que ganha propriedades ao longo do tempo. Nesse sentido, a diferença presente na noção de raça é construída, não como uma invenção, mas como uma categorização — por exemplo, entre raças branca, negra, amarela e indígena.

A diferença, por si só, pode produzir discriminação. Quando pensamos em outras formas de diferença que não são necessariamente raciais, encontramos formas discriminatórias — uma separação, critérios de segregação. Porém, nesse primeiro elemento, ainda não se inclui a ideia de negatividade presente no racismo.

Pode haver discriminação positiva; inclusive, pode-se encontrar valor nela, uma vez que o conceito de igualdade tende a nivelar diferenças, o que pode ser problemático. Por isso, no campo das políticas públicas, opta-se por políticas de equidade em vez de políticas de igualdade. Reconhecemos as diferenças e, assim, promovemos uma discriminação positiva que possibilita políticas de equiparação, como a política de cotas raciais.

O segundo elemento que compõe a noção de racismo é a hierarquia. Além de constatar a diferença, há também a sua hierarquização, algo que foi fomentado pelo colonialismo.

O colonialismo, ao inventar as raças, imediatamente hierarquizou entre aqueles que são considerados racionais e aqueles que não seriam dotados dessa capacidade. Os mais próximos de uma civilidade conforme os padrões europeus — ainda que existam outras civilizações com diferentes formatos — são escolhidos como modelo civilizatório, com outras sociedades sendo vistas como primitivas.

A diferença, combinada com a hierarquia, gera não apenas discriminação, mas também preconceito, pois a hierarquização implica uma inferioridade inata, socialmente construída em relação a determinado grupo.

Por fim, o terceiro elemento fundamental para a construção do racismo é o poder. Há uma distribuição desigual nas relações raciais; além da hierarquização, o poder se concentra em um determinado grupo — o grupo branco — em comparação com os demais grupos racializados. Paulo trouxe para a discussão Grada Kilomba, que aponta que o racismo, necessariamente, está relacionado à supremacia branca. Isso se torna claro quando observamos que o poder, os bens materiais e os bens simbólicos estão concentrados nas mãos da branquitude.

Ao incluir o elemento do poder na definição de racismo, entende-se por que não é possível falar em racismo contra si próprio. Não existe racismo contra si próprio, pois a dinâmica de poder fará com que práticas e discursos racistas sejam voltados contra a própria população negra. Paulo exemplificou que, se ele se posicionar contra as cotas raciais, no futuro, as crianças de sua família serão prejudicadas. Nesse sentido, a noção de racismo contra si próprio não se sustenta, pois é necessário considerar o poder nas relações raciais.

Paulo explicou que o conceito de "racismo reverso" é impreciso. Mesmo que ocorram comportamentos hostis de indivíduos negros contra indivíduos brancos com base em raça, essas ações não se enquadram na definição de racismo, pois a dinâmica de poder subjacente permanece inalterada, sendo este um elemento crucial na definição de racismo.

A noção de racismo apresentada por Paulo Bueno se sustenta na diferença, hierarquia e poder, diferenciando as categorias de racismo, preconceito e discriminação, que não são sinônimos. No racismo, há discriminação e preconceito; no preconceito, há discriminação, mas não necessariamente racismo.

Paulo avançou na definição de racismo, diferenciando o racismo estrutural do racismo institucional, que, por sua vez, difere do racismo cotidiano. Na oficina, ele abordou em mais detalhes essas distinções e como o racismo se manifesta nas instituições, assim como os impactos que os jovens negros acolhidos sofrem em seu dia a dia.

Paulo Bueno é psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP). Ele também colaborou com o Instituto AMMA Psique & Negritude (2020-2021) e é autor de Coisas que o Pedro me ensina: crônicas de uma paternidade. Além disso, atua como supervisor clínico e institucional, é docente no Instituto Gerar de Psicanálise, pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP) e professor convidado do Programa Fellowship (2021-2022) da Columbia University.

Confira o vídeo com a oficina completa: clique aqui.

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OFICINA – ACOLHIMENTO E RELIGIÃO: VAMOS FALAR SOBRE ISSO?

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OFICINA – ACOLHIMENTO E RELIGIÃO: VAMOS FALAR SOBRE ISSO?

No dia 19 de agosto de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Acolhimento e religião: vamos falar sobre isso?”, que contou com a participação dos especialistas Valeria Pássaro, pedagoga, com especializações e larga experiência na área de educação e do acolhimento, e Luiz Eduardo Berni, doutor em psicologia (USP), mestre em ciências da religião (PUC-SP) e pesquisador do Ateliê de Pesquisa Transdisciplinar (APTD).

Valéria inicia a sua apresentação abordando como é importante abrir espaços para refletir sobre temas tidos como “quase ocultos” dentro da área do acolhimento, sendo a religião um deles: algo que pouco se fala, mas que, de alguma maneira, muito se vive nos serviços. Coloca, então, que falar sobre religiosidades nos faz pensar sobre o acolhimento enquanto um espaço de inclusão e traz como questões: será que os serviços de acolhimento são, de fato, espaços nos quais é possível incluir as diferenças, também acerca das diversas crenças e fés das pessoas? Será que os profissionais desses serviços perguntam sobre a religião das crianças e adolescentes? No cotidiano, como escutamos sobre as religiões com as quais se identificam, e também de suas famílias?

A especialista discute sobre a importância de se refletir sobre o lugar da religião em nossas vidas, ao considerarmos os serviços de acolhimento como espaços coletivos nos quais a vida circula. E, nessa perspectiva, ela se remete às épocas em que as pessoas se baseavam em rituais enquanto marcadores, acompanhando o desenvolvimento humano, dando ritmo à vida, e trazendo resposta sobre perguntas que até hoje nos acompanham, também dentro dos serviços: De onde vim? Onde estou? Para onde vou? Partindo dessa ideia, apresenta que, na área do acolhimento, existem rituais importantes, como, por exemplo, na chegada de um novo membro ao serviço, marcando um novo momento no grupo. Como acolhemos esse sujeito e, dentro desse todo que ele traz, a questão da religião? Reflete como, de maneira geral, ela é pouco provocada e escutada, considerando ainda que, apesar de vivermos em um país que se diz laico, na área do acolhimento, muitas vezes, está prescrito que algumas religiões, junto às suas crenças, têm mais valor que outras.

Valéria nos provoca também a pensar na representação que circula do serviço de acolhimento como uma “grande família”, onde os adultos determinam o que pode ser bom e no que é importante as crianças e adolescentes acreditarem.Em geral, marca-se um Deus, aquele que os adultos acreditam, sem perguntarmos a eles se e qual é esse Deus que creem. Ela questiona se há a possibilidade de acreditarem em outros jeitos e outras místicas, além desse Deus que prevalece, reforçando a dificuldade do estado brasileiro, cristão, de assumir como religiosidades possíveis as de matriz africana, o que aparece também no percurso do acolhimento. Contrapõe, então, o papel dos serviços de acolhimento, que deve ser de proporcionar inclusão e cuidado, ao preconceito quanto às diferenças e aos diferentes que, muitas vezes, se observa.

 

Ela segue trazendo suas experiências e reflexões de quando assumiu a coordenação de um serviço de acolhimento em São Paulo. Conta a história de uma adolescente que tinha o desejo de frequentar o terreiro, espaço no qual se sentia bem, mas encontrou resistência na equipe da instituição para acompanhá-la, até que outros educadores aceitaram ir e participar dos rituais com ela.  Esse episódio acarretou em uma série de conversas sobre religião, religiosidades e fé entre os profissionais do serviço, e na criação do projeto “Expedições de mim”, com o intuito de ampliar a compreensão e o conhecimento de diferentes crenças a partir de encontros com sacerdotes de várias religiões e visitas a diferentes espaços pelos profissionais, crianças e adolescentes.  Estas vivências  proporcionaram muitos ganhos em termos de entendimento e acolhimento efetivo dos outros e de seus valores.

A especialista também enfatiza que, na área do acolhimento, precisamos estar firmes, no sentido de nosso propósito no processo de educação social com as crianças, adolescentes e famílias e, ao mesmo tempo, ser flexíveis, para saber que não sabemos, reconhecer que não conhecemos e expandir, buscando novos conhecimentos, inclusive com os meninos e meninas com os quais atuamos. Aborda que, se partirmos do princípio que não sabemos, e de que cabem outros saberes, histórias e movimentos dentro do acolhimento, acredita que é muito possível a inclusão, não só sobre religião, mas de muitos outros aspectos da vida, que facilitariam e tornariam o trabalho mais viável em termos de desenvolvimento de sujeitos.

Por fim, Valéria define a religião como uma forma de participação social, ao mesmo tempo que reforça como não há só um modo e as crianças, adolescentes e adultos precisam compreender e participar. Traz que não cabe aos educadores serem impositivos ou deterministas sobre o que se deve ser, caso contrário, podem desacelerar ou amputar as possibilidades de ser no mundo das crianças e adolescentes com os quais trabalham. Precisam, sim, atuar como experimentadores e questionadores acerca do que mais se tem no mundo e na vida, incluindo as várias possibilidades de religião e de religiosidades.

Luiz, ao retomar elementos da fala de Valéria, inicia colocando como, na legislação, não existe hoje religião oficial no país, mas a forma como o poder está estruturado nos leva a perceber que ele está na mão de determinados grupos religiosos, o que se materializa também na política. Para aprofundar essa ideia, ele organiza a sua reflexão apresentando elementos que contribuem para a compreensão da colonização como fundamento de uma sociedade desnivelada e excludente. Aborda como o Brasil é fundado a partir de um ato de violência, vindo do imperialismo europeu, movimento que surge na história com um ato simbólico de origem religiosa, marcado pela Primeira Missa. A religião surge sempre no conflito entre diferentes sociedades e, aqui, o cristianismo católico, tido como religião oficial, andava junto com o processo de escravidão dos indígenas. 

O especialista, em seguida, discute a união entre a Igreja e o Estado nesse período, disseminando uma educação religiosa e marcando um monarca coroado “em nome de Deus”, estrutura esta que ainda vigora no estado brasileiro, em alguma medida. E reforça como entender essa matriz é fundamental, já que é nela que reside, em parte, a exclusão que vivemos e onde encontramos a razão da violência que leva à desestruturação social, demandando, então, ações e serviços, como os de acolhimento.

Luiz passa, então, a apresentar aspectos que fundamentam as religiões, como as práticas terapêuticas, algo que ajuda as pessoas a “se enquadrarem”. Traz uma frase do antropólogo Clifford Geertz para conceituar religião como um “sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, permanentes e duradouras disposições e motivações nos seres humanos”. E aborda duas dimensões importantes postas na sociedade: quando a fé conforta e ajuda a produzir bem estar, chamamos, na Ciência da Religião, de coping positivo; já o coping negativo surge quando a religião não ajuda a estruturar a vida e leva ao mal estar, promovendo dor ao sujeito e exclusão social.

Ele também coloca como a fusão do Estado e da Igreja promoveu o surgimento de uma casta privilegiada e de muito sofrimento do povo, gerando um conflito social, que leva à Revolução Francesa e à separação entre o Estado e a Igreja. Isto dá origem ao movimento de laicidade, que determina que Deus passa a ser o do coração e não mais o do Estado: o poder religioso fica para a crença individual de cada um e, ao mesmo tempo, surge uma instância que pode explicar as relações de conhecimento desvinculadas da religião, a ciência. Esse  movimento pode fortalecer a possibilidade da diversidade religiosa ser de fato acolhida, ao privilegiar todas as matrizes de fé. Luiz finaliza retomando o percurso da reflexão que queria promover nessa oficina e pontuando como o impacto da religião na constituição das pessoas é muito pouco discutido, inclusive na formação acadêmica, o que contribui para aprofundar problemas sérios que podemos ver no estado brasileiro.

Na segunda parte do encontro, os participantes foram convidados a trazer perguntas e considerações acerca do tema, com base em suas experiências na área do acolhimento. Algumas questões que surgiram foram: como lidar com a contradição entre o que está prescrito nas Orientações Técnicas sobre as liberdades de crenças e religiões nos serviços e as práticas de instituições fundadas por organizações religiosas que direcionam como as coisas devem acontecer; e como não deixar a religião entrar dentro da Política Pública do Acolhimento Familiar quando ocorre dentro de uma família. Os especialistas, nesse momento, dialogaram sobre como esses espaços de acolhimento atuam, muitas vezes, como reflexos do que acontece na sociedade, perpassados por uma história de fazer o bem ligado às Igrejas Católicas. E reforçaram a importância de ouvir as crianças e adolescentes sobre o que acham e pensam sobre as religiões e, também, de compreender e considerar quais caminhos que as famílias de origem fazem na perspectiva das religiosidades, para que não exista tantos atravessamentos.

 

 

 

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Oficina Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos?

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Oficina Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos?

No dia 29 de Junho de 2022 o Instituto Fazendo História realizou a oficina presencial com o tema: “Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos? ”, que contou com a participação dos especialistas: Paulo Bueno, psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP),  supervisor clínico, docente do Instituto Gerar de Psicanálise e pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP), integrou o Grupo Balaio de Acompanhamento Terapêutico (Sedes Sapientae) e, Carla França, psicóloga com atuação clínica e social, especialista em Saúde da Família e psicanalista em formação pelo Núcleo de Pesquisas Psicanalíticas (NPP). Recentemente foi colaboradora do Instituto Fazendo História no programa de Formação. Atualmente é colaboradora do Instituto AMMA Psique e Negritude, possuindo como eixo de trabalho a Psicologia e as relações Étnico-Raciais.

Paulo inicia sua fala perguntando: “O que é uma criança?” e fez derivar dela outras perguntas: “O que uma criança faz?”, “Onde está essa criança?”. Contextualiza que em nossa sociedade o que difere uma criança de outros sujeitos são as atividades que ela desenvolve, e uma dessas atividades é o brincar. O brinquedo é uma tripla ponte, que vai permitir a ponte entre o instante imediato e o futuro, uma ponte que vai permitir uma ligação entre a realidade e o mundo imaginário ou da fantasia, e por fim, essa ponte liga a criança ao outro, seja este outro uma criança ou um adulto.

Quais são as possibilidades para que essa criança possa embarcar no mundo das fantasias e se desligar, diante das durezas e das cruezas do momento imediato, e principalmente, quais são as condições que vão possibilitar a ligação da criança com o outro? O especialista cita uma hipótese de que a colonização no Brasil e no Ocidente, nesse mundo que é determinado colonialmente existe um projeto e que visa atualizar a travessia do Atlântico, citando que os navios negreiros faziam esse transporte do continente africano para o continente americano, e as condições dessas travessias eram as piores possíveis, de completa desumanização, sem a mínima garantia de cuidados sanitários. Os africanos eram amontoados e muitos morriam pelo caminho. As crianças recebiam os mesmos tratamentos que os adultos, sendo que não existia distinção entre ser criança e ser adulto. Um dos braços do projeto colonial que vivemos tende a reatualizar esse tipo de travessia. Então, para que se faça uma travessia para o futuro e em direção ao outro, submete-se às piores condições possíveis. Portanto, a pergunta que nos foi colocada na perspectiva da Descolonização é: “Como fazer para descolonizar essa ponte? ” E essas perguntas vão nos direcionando para alguma resposta que contribua para pensar em alternativas possíveis

Segundo Paulo, uma possibilidade é pensarmos nos brinquedos que nos rodeiam (nos consultórios, nas UBS, nas escolas, na brinquedoteca, nos CAPS, nos Serviços de Acolhimento). Qual a raça dessas bonecas e bonecos que estão presentes nessas instituições? Pensar nessa resposta é compreender que se em sua maioria essas bonecas e bonecos são brancos. Estamos assim transmitindo, quando não há uma diversidade nesses brinquedos, quando não há uma boneca preta, que aquele ou aquela que é digna desses cuidados são justamente aqueles que exclusivamente fazem parte de um determinado grupo racial. Com relação aos personagens de livros, nós fazemos uma avaliação ou uma análise a partir do conjunto de obras, de literatura infantil e juvenil. Quais são os livros existentes em nossas organizações? Não basta ter um livro, quais as possibilidades de oferta? Todas essas são questões educacionais, técnicas, de gestão, que vão nos ajudar a pensar na descolonização dessa ponte.

Se o brinquedo é uma ponte entre a criança e o outro, o que é transmitido quando todos os modelos, seja na literatura, seja nos livros, seja na natureza das brincadeiras, onde todos os modelos são brancos? Como se dá uma brincadeira mesmo sem o suporte do brinquedo, seja em uma brincadeira de faz de conta, como se dá a distribuição de gênero e raça?

Paulo cita a hierarquização das profissões, e cabe ao adulto observar nas brincadeiras o porquê dos meninos serem o médico e as meninas estarem no lugar de assistente, cabe a nós observar o porquê o menino negro não é o príncipe e a menina negra não é a princesa, qual o lugar que cada um ocupa, qual o lugar que lhes é reservado? Por que eles não podem fazer uma circulação de papéis? Importante que o adulto não direcione, mas intervenha em alguns momentos. Neste momento, fazemos escolhas técnicas e escolhas políticas e para que essas escolhas aconteçam, há que se ter um olhar muito apurado, levantar essas interrogações continuamente quando observa-se tais brincadeiras. Não adianta olhar para a criança quando ela está aprontando, quando ela está barbarizando na escola, mas olhar para o contexto todo. Por que é destinado para o negro o papel de vilão? Como intervimos para que circule esse papel? Como não cristalizar esses papéis fazendo o recorte de raça e gênero? Pensando inclusive nessa questão de gênero, porque o menino não pode ser a princesa? Esse foi o primeiro ponto: “o que faz uma criança? ”

O segundo ponto é: “Onde está uma criança?” Pensando na sociedade ocidental, em nosso imaginário o lugar da criança é a escola. O ECA vai colocar como um direito, a criança estar na escola, uma obrigação dos guardiões e do Estado, oferecer e garantir a permanência da criança na escola durante os anos de sua formação e desenvolvimento.

Paulo cita alguns autores, fala da importância em referenciar quem nos inspira, cita a tese do Frantz Fanon, psiquiatra radicado na Argélia - “que uma criança negra típica, em uma família negra típica, é uma criança atípica em seu primeiro contato social”. Esse é o contato social mais sistemático que uma criança tem, a escola. Então, por que há essa desproporção entre a família e a sociedade? Porque que essa criança, onde tudo vai bem dentro de casa, começa a se sentir completamente deslocada em um mundo social que lhe é apresentado a partir da escola? Interessante como tal fato também ocorre em casos de adoção: crianças negras sendo adotadas por famílias brancas que conseguem fornecer os cuidados necessários, carinho, cuidado, amor e valorização dessa criança negra, mas o choque é o mesmo quando ele encontra um social mais amplo. Todas as características que são valorizadas da porta para dentro são motivo de exclusão da porta para fora.

O especialista também cita outra autora: Neusa Santos Souza, psicanalista e psiquiatra baiana, que afirma que a criança já está em uma família atípica (família negra), que carrega e transmite as marcas do racismo. Essa desproporção entre família e sociedade se mantém, e se torna ainda mais complexo, pois no interior dessa família já há uma desproporção no que se refere a comparação do que se idealiza como uma família na nossa sociedade e o que essa família representa efetivamente.

Da mesma forma que essa criança negra é uma não criança, essa família negra é uma não família. Essa sutileza que a autora traz é muito importante quando se trabalha com famílias na ponta, como no caso dos serviços de acolhimento, seja ele institucional ou familiar. Estamos falando de sucessivos fracassos por parte do Estado. Trabalhamos com o ponto mais frágil de uma cadeia de acontecimentos e fracassos. Essa ponta mais frágil é a criança e sua família e entendermos que essa inadequação está colocada por base, é absolutamente fundamental.

Paulo traz uma reflexão sobre um tema bastante discutido ultimamente que é a noção de abandono, ou seja, todo ato de entrega de uma criança é interpretado como abandono e como isso pode ser bastante problemático. Ele traz um exemplo do Rei Salomão onde em uma situação há uma criança, duas mulheres que se dizem mãe dessa criança, e a decisão que o rei toma é dividir a criança e dar metade para cada mulher. Uma das mulheres se pronuncia, abre mão do filho para que o rei não faça isso e ele entende que, por tal ato, ela seria a mãe, porque só uma mãe entregaria o próprio filho para outra pessoa, a fim de poupar sua vida. A entrega da criança muitas vezes é o ato de maternidade. Quando você vê seu filho ou sua filha prestes a ser cortado de alguma maneira, quando não cortado literalmente - pode ser uma ferida subjetiva muito profunda, a fome, a pobreza, e o quanto ainda é comum a “adoção à brasileira” (ilegal), a família pobre que entrega seu filho para uma família rica, o que significa essa entrega?

Neste sentido, não podemos interpretar toda a entrega de uma criança como abandono, pelo contrário, este é o gesto possível naquele momento para aquela mãe, para aquela família que logo no início de “ser” família, é interpretada, julgada como uma família inadequada. É inadequada por não possuir um emprego estável, e o emprego que possuem não é socialmente valorizado. Cita o livro da Carolina Maria de Jesus, pois refere situações como esta, relato de uma mulher que tem uma família bastante inadequada, mas que luta com todas as suas forças com muito amor para dar sustentação a essa família. O quanto que a mulher negra fica à frente da família, e vai mostrando a luta diária dela contra a fome, e como podemos pensar essa família como o resultado de um abandono sistemático, um abandono que tem o atravessamento do racismo.

Paulo cita uma pesquisa da Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz, onde se baseiam em um conceito de um historiador que vai determinar que o início da infância no ocidente se dá pelo sentimento particular que ele nomeou de “paparicação”, no sentido de paparicar, mimar, pegar no colo, dar beijo, ver essa criança como um ser especial, algo que não acontecia antes do século XVII. Nesta pesquisa de campo, elas observaram que existe uma diferenciação na distribuição de afeto entre crianças brancas e negras. As crianças brancas são mais paparicadas. Quais são as marcas que ficam? Marcas constitutivas e que chegam na vida adulta. Então, a pergunta que fica é,  se o lugar da criança é a escola, precisamos reafirmar que aquele que está em situação de acolhimento institucional ou familiar, também é uma criança. E a tendência daquele que recebe essa marca de “o acolhido”, mesmo dentro das organizações cotidianas da escola, é que seja visto como a “não criança”, e a não criança pode ser substituída por vários nomes – “baderneiro”, “abandonado”, “o órfão”. Existem ofensas diretas de crianças e adolescentes que apontam esses pronomes.

Paulo questiona - e nos SAICA’s, como se dá a distribuição de cuidados e afetos? Quem é pego no colo e quem não é? Quem é contido no sentido de dar continência ao choro e quem não é? Quem é elogiado? Quem é a princesa?

Ademais, a última pergunta: o que é uma criança? Podemos definir criança como uma categoria socialmente construída para nomear os anos iniciais do desenvolvimento do ser humano, e nela se encontra uma primeira barreira. Desde que inventou-se o termo, a partir do momento que os europeus chegam em outro continentes e não encontram ali “espelhos”, eles inventam a raça não apenas para nomear uma diferença, mas para hierarquizar essas diferenças, dentro de um projeto político de dominação que veio dar origem posteriormente ao capitalismo.

Quando se inventa o nome negro, ele é inventando como a negação do humano. E nesta definição do que é criança, excluímos as crianças negras, pois o que se vê ainda é que os negros estão fora do campo do humano para muitas representações e muitos lugares. E se negros não são humanos, os filhos de negros também não são humanos. Paulo cita uma cantiga na qual ele conheceu na vida adulta, que ele nomeia como catastrófica:

“plantei uma sementinha no meu quintal e nasceu uma negrinha de avental,

dança neguinha,

eu não sei dançar, 

pega o chicote que ela dança já.”

 

É uma cantiga transmitida em roda por muitos adultos para grupos de crianças brancas e negras até os dias de hoje, e não é algo que se encontra nos livros de história, mas no Youtube existem várias, e é da ordem do horror a questão da desumanização. Cita uma educadora importante  Benilda Brito, precisamos reafirmar a todo momento quando pensamos no campo de resolução de conflitos entre as crianças, que não podemos traduzir todos os conflitos como bullying. Destaca que há uma diferença entre o racismo e o bullying, sendo que o bullying tende a inferiorização do outro, enquanto o racismo mais radicalmente tende a desumanização das crianças negras. O racismo é transgeracional, se eu sou negro e fui chamado de macaco, meus pais foram, meus avós foram, e meu filho se ainda não foi, será, e o filho dele também, diferente do bullying. O especialista traz um caso, e encerra dizendo que é preciso produzir infâncias negras, que perderam o direito de brincar, e uma de nossas lutas é a defesa inegociável do direito à infância de nossas crianças negras.

 

Em seguida, Carla dá sequência trazendo a proposta de uma imersão na qual ela nomeou de “poética” sócio-histórica, apresentando o vídeo da Conceição Evaristo  “Vozes Mulheres”, com o objetivo de fazer uma reflexão sobre as gerações, pois neste poema a autora vai falando sobre a avó, bisavó, da mãe, dela e da filha, e nos situa na história. Em sua apresentação Carla cita algumas autoras, tais como Carolina Maria de Jesus, traz alguns trechos do livro – Quarto de Despejo, e contextualiza a importância de entendermos que criança é essa, que família é essa, quais os arranjos possíveis para então chegarmos nas crianças e adolescentes que atendemos.

Carla também apresentou sua linha da vida e explanou sobre a importância de saber a história da instituição ao se iniciar um processo de formação. A especialista situa todos sobre alguns marcos históricos para se pensar o preto no Brasil, cita a Lei do ventre livre, 1871 - a criança estava livre, e os pais dessa criança estavam livres? A ideia que se tinha de família naquela época era possível pensar isso, neste processo escravizatório? Depois, temos a Lei Áurea 1888. Carla foi costurando a história de sua família com os marcos históricos no Brasil. E fala da importância das escritas de Carolina de Jesus a partir de seu livro, o que ela fala se vive, e os atendidos vão nos contando sobre uma realidade muito próximas, e quão fundamental é ter essa escritora, essa mulher preta para contar sua realidade, que é a realidade de muitos - ela é representante de muitos.

Carla destaca a importância de se colocar dentro do processo, porque lidamos com essa realidade o tempo todo, seja no campo privado ou no campo profissional, estamos dentro desse contexto sócio-histórico. O sujeito que eu atendo não está solto, ele pertence a um lugar, está inserido em um território, tem uma referência de família, ou seja, existe uma história que o antecede e que o sucede. Continuando, a especialista traz dados retirados do IPEA datado de 2003, sendo que 63% das crianças e adolescentes acolhidos no Brasil são negras, por isso é essencial falar sobre o tema das questões étnicos-raciais para os profissionais que atuam em acolhimento - não dá para olhar para essa criança sem considerar esses dados. Também menciona sobre os motivos de acolhimento, sendo eles: pobreza, abandono, violência doméstica/maus tratos, se faz importante saber quem é essa criança, como ela foi para o abrigo?

Carla continua explanando sobre o papel do educador, falando sobre o que significa ser educador, pensando a partir das Orientações Técnicas, documento que dá diretriz ao trabalho de um serviço de acolhimento e considera que todos os profissionais que atuam nos serviços são educadores. E para convocar os participantes para esta reflexão, ela trouxe alguns nomes que foram ou ainda são usados para o profissional educador, que são: pajens, monitores (pensando na perspectiva desse lugar de monitorar, vigiar, conter), atendentes, cuidadores, instrutores (um termo mais atualizado e tinha a função de instruir), orientadores (hoje ainda se usa muito esse termo), e educadores.

Pensando no sentido do processo, o trabalhador tem essa incumbência, e a palavra educador é o que mais se aproxima, ela dá norte, direciona e permite compreender a dinamicidade e a complexidade deste trabalho. Há ainda muitos atravessamentos devido a questão sócio-histórica: muitas vezes o profissional ainda está colado no papel de monitor, principalmente quando precisa manejar alguma situação de conflito na casa e ainda se pensa que aquele sujeito precisa ser punido ou que a polícia precisa ser chamada para fazer essa contenção. Assim contribui-se com uma visão que está ultrapassada e no dia a dia vai se confundindo, por isso, é preciso estar atento para não estar nesse lugar do monitor. Ser educador é ser um facilitador na vida das crianças e dos adolescentes para além da ideia de cuidador, é preciso estar junto e fazer junto com a criança e com o adolescente.

Carla traz trechos do PNCFC e das Orientações técnicas justamente para pensar o papel do educador como aquele que vai auxiliar as crianças e adolescentes a lidar com suas histórias de vida, destacando os avanços a partir dessas diretrizes. Quantos educadores, ao perceberem essas mudanças principalmente em relação às questões étnicos-raciais, se sentem com medo ou receosos em sair de uma lógica que reproduz racismo diariamente. Como vamos entrar em um embate sobre o tema se até 10 anos atrás essa era uma lógica de funcionamento muito bem estabelecida? Existe um desconforto do profissional que tem que lidar com tais demandas, há que se ter discernimento e implicação. Carla convoca com a seguinte pergunta: você já esmiuçou a sua linha do tempo ancestral?  

A especialista trouxe frases de autores como Bell Hooks, Paulo Freire e imagens que retratam propagandas de cervejas, produtos de beleza, exibindo mulheres pretas que são extremamente ofensivas e racistas, e que de alguma maneira são circuladas em rede nacional e nas mídias. Fala sobre o quanto esse tipo de anúncios e propagandas são extremamente preconceituosas e racistas, além de objetificar o corpo da mulher. É importante ter esse cuidado para não reproduzirmos essa ideia com as meninas, fazendo o recorte da mulher. Carla diz que se no serviço de acolhimento no qual você atua ainda não vivenciou nenhuma situação de racismo, se faz necessário trocar a lente.

Carla propõe que todos pensem em estratégias, inclusive olhar para o PPP da instituição para pensar uma lógica antirracista dentro dos serviços de acolhimento. Um primeiro ponto é reconhecer o racismo estrutural, em seguida a questão da branquitude, privilégios e meritocracia. Como  conversar com um adolescente baseado na meritocracia? Muito complexo, pois usando esse discurso o jovem não se sentirá escutado. É importante discutir o que são os privilégios, o resgate da memória e empoderamento, trazendo sentido para a história, contando sobre o que vieram antes.

Carla cita Carlos Eduardo Machado para pensar nas potências e no quanto o preto foi colocado em um lugar de não saber, de incapacidade de pensar. Esse autor traz a questão das tecnologias, geometria, métrica até para fazer as tranças - muitos usavam tranças para se localizar, pois nelas continham mapas. A representatividade e autoestima, são importantes porque as crianças pretas não são desejadas nos ambientes - como trazer figuras em que elas possam se reconhecer, contar a história que a antecede. Valorização da coletividade da cultura local, importante pensar no território quais são os meios de cultura local em  que as crianças e adolescentes possam ser inseridos:  bibliotecas, coletivos pretos, espaços em que eles possam circular e se ver de um jeito diferente, a partir de suas potências. Quem são os parceiros que podem contribuir com essas práticas dentro dos serviços? Escuta afetiva e olhar ampliado ouvir para além do dito, das palavras, o que é o desejo dessa criança, o que ela está querendo comunicar, ampliar as possibilidades de escuta. Muitas vezes a criança está trazendo questões que não somente delas, são da família e do território. Inquietude e abertura de outras possibilidades, pensando neste lugar do educador de convocação e provocação, permitir se olhar através do que está cristalizado em mim, me movimentar para quebrar preconceitos. Nutrir o cuidado com a comunicação, como cuidamos da forma como estamos nos expressando, como vamos nomeando e ajudando as crianças e adolescentes a ir nomeando o cabelo, a cor da pele. Existe uma diferenciação e é preciso falar sobre isso, perguntar como aquela criança quer se apresentar, os penteados que ela quer, o quanto essa criança e adolescente podem escolher como querem estar penteadas, pensar nos produtos. Tomar cuidado como me expresso: “cabelo ruim”, “moreninho”, educador como facilitador do processo.

implicação da sociedade, ou seja, não são só negros que precisam falar sobre racismo, precisamos saber dos efeitos que o racismo causa pensando de forma concreta e subjetiva, se faz necessária a implicação de todo mundo para que possa haver alguma mudança. E, por fim, ampliar o pensamento para uma perspectiva decolonial como olhamos o fenômeno de um jeito diferente, e há condições de subverter.

Por fim, Carla traz algumas sugestões de materiais de apoio, vídeo, filmes, música, livro. Antes do encerramento houve um momento de dramatização para que os participantes pudessem compartilhar e trocar algumas situações de racismo vivenciados nos serviços de acolhimentos, foi um momento de muita reflexão e de tensão diante de um tema tão complexo, porém necessário. Assim se deu a oficina neste dia.

Caso tenha interesse em assistir a oficina na íntegra, acesse.

 

 

 

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Oficina - Ritos de passagem: chegadas e partidas

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Oficina - Ritos de passagem: chegadas e partidas

No dia 23 de agosto de 2021 foi realizada a oficina “Ritos de passagem - Chegadas e Partidas”, que contou com a participação das profissionais Valéria Tinoco, psicóloga, mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP, representante da IAN Brasil (International Attachment Network), e Dalizia Amaral, psicóloga, doutora e mestre em teoria e pesquisa do comportamento, especialista em psicologia social e psicopedagogia institucional e psicóloga do Espaço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Barcarena - Pará.

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Oficina - Regras e Rotina

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Oficina - Regras e Rotina

No dia 09 de agosto o Instituto Fazendo História realizou a oficina “Regras e rotina”, que contou com a participação de Cristina Rocha Dias, educadora, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP, membro do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL-USP), membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes, Supervisora institucional e de projetos no campo da infância e adolescência.

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OFICINA: "Projeto Político Pedagógico: Boas práticas nos serviços de acolhimento"

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OFICINA: "Projeto Político Pedagógico: Boas práticas nos serviços de acolhimento"

No dia 24 de maio de 2018 foi realizada a oficina "Projeto Político Pedagógico: Boas Práticas nos Serviços de Acolhimento” com as participações da especialista Cristina Rocha Dias, psicóloga com mestrado em psicologia clínica pela USP e supervisora no Instituto Fazendo História e da especialista Valéria Pássaro, coordenadora pedagógica das Casas Taiguara…

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