O Instituto Fazendo História contribui para que crianças e adolescentes acolhidos elaborem e compreendam os fatores que levaram a esta medida de proteção e se fortaleçam para o retorno à convivência familiar ou para uma adoção. Acompanhamos crianças e adolescentes durante o período em que estão afastados provisoriamente da família biológica ou à espera de uma família adotiva. Em alguns casos de encaminhamento para adoção, participamos da primeira parte da adaptação da criança ou adolescente com sua nova família, enquanto ainda está no serviço de acolhimento, oferecendo suporte para esse momento de transição. A experiência do Instituto neste contexto reafirma a importância das histórias de vida, da verdade e da honestidade na construção de famílias pela adoção.
Não é novidade que a filiação pela adoção é tão genuína quanto a biológica. Em ambas formas de ser família, a construção da parentalidade é um processo complexo, gradual, cheio de desafios. Vínculos afetivos em qualquer família não estão garantidos. Para serem construídos precisam de tempo, esforço, dedicação, tolerância à frustração, trabalho e paciência. Além disso, não é fácil aceitar que filhos, adotivos ou biológicos, não são exatamente como se imaginava. Suas características, jeito e escolhas podem ser frustrantes para os pais. Oferecer as melhores condições de vida ao filho não garante que a família esteja imune às dificuldades de convivência, conflitos e turbulências. Nesse sentido, diz-se que todo filho deve ser adotado. Ou seja, deve ser aceito e amado, considerando sua personalidade e características, seus limites, qualidades e dificuldades.
Embora famílias adotivas e biológicas enfrentem desafios semelhantes, o contexto da adoção carrega uma importante especificidade. Filhos adotivos não nascem no momento da adoção, possuem uma trajetória de vida – curta ou longa – anterior à chegada na família. Aceitá-los significa aceitar e acolher sua história, já que ela faz parte de sua identidade e constitui sua personalidade. Quando o passado é integrado ao presente e ao futuro, criam-se condições para que a criança desenvolva um sentimento de identidade consistente. Reconhecer, considerar e ter consciência da história anterior à adoção ajuda os pais a compreenderem os sentimentos dos filhos, que no início do convívio podem estar ligados ao medo de se separarem, serem rejeitados ou abandonados.
Pais adotivos sabem a importância de contar aos filhos que são adotados, mas na prática isso não é fácil. O que devo contar? Como contar? Qual será o melhor momento? Revelar e conversar são a mesma coisa? Uma conversa única de revelação é suficiente? O que significa exatamente conversar sobre adoção? Entendemos que conversar sobre adoção não significa usar a palavra adoção diariamente ou apresentar o filho como adotivo. Significa abrir um canal de diálogo sobre a adoção na intimidade da família, ser honesto, deixar o filho explorar suas origens e fazer perguntas a respeito. Falar da adoção pode ser uma atitude simples de contar onde nasceu, os lugares onde morou, as pessoas que cuidaram amorosamente dele, as sutilezas prazerosas da sua rotina antes da adoção.
Quanto mais informações os pais tiverem em relação ao dia a dia da criança antes da adoção, maiores são as chances de compartilharem com os filhos aspectos positivos sobre seu passado. É importante lembrar que durante o período de acolhimento os filhos não estiveram somente à espera da chegada da família adotiva. Foram cuidados por adultos, estiveram vivos e ativos, viveram alegrias e tristezas, experimentaram frustrações, se desenvolveram e conquistaram autonomia. Construíram relações de afeto com os profissionais do serviço de acolhimento e com outras crianças e adolescentes. Deve ter sido um período significativo, permeado também por carinho e lembranças.
Mas o passado do filho adotivo também carrega momentos dolorosos, afinal ele precisou ser separado de sua família de origem por algum motivo importante e acolhido. Pais adotivos podem ter muitas dúvidas e angústias sobre esse período: é necessário falar sobre isso? Será que se souber mais sobre os pais biológicos repetirá a “história de fracasso, de violência ou de uso de drogas”? Será que falar sobre a família biológica o estimulará a procurá-la? Se um dia ele quiser encontrar a família biológica, será que vai nos trocar e nos abandonar? O desconhecido é mesmo assustador e cria espaço para construção de fantasias que muitas vezes não correspondem à realidade. Quando os pais sabem pouco sobre o passado do filho, é interessante que se disponibilizem a ajudá-lo a descobrir mais sobre sua história quando crescer. Esta atitude transmite confiança e segurança. Ter poucas informações sobre a família biológica ou dados que produzem estigmas, preconceitos e uma visão desqualificada sobre ela não contribuem para o desenvolvimento da família adotiva. Atribuir aspectos negativos à família biológica não facilita a construção da identidade dos filhos. Profissionais do judiciário e do serviço de acolhimento devem ajudar os pais adotivos a construírem uma visão aprofundada, compreensiva e empática em relação às famílias biológicas. Afinal desvalorizar as origens dos filhos adotivos pode fazer com que não se sintam tranquilos em relação à sua própria identidade.
Quando os pais adotivos e, posteriormente, os filhos compreendem a complexidade de fatores – sociais, econômicos, emocionais – que impossibilitaram que ficassem com as famílias biológicas, as fantasias e enredos imaginados se diluem e os filhos podem se identificar com aspectos positivos não só dos pais adotivos, como também dos pais biológicos. O passado dos filhos, não pode ser motivo de vergonha.
Adoção é um ato de amor e fruto do mais genuíno desejo de encontro compartilhado por pais e filhos. A sociedade brasileira ganhou mais clareza em relação à legitimidade da filiação pela adoção. A legislação, desde a promulgação do ECA em 1990, tem sua contribuição nessa conscientização, pois reconhece e legitima a família adotiva antes que parcela da sociedade o fizesse. O direito à história de vida, também garantido pelo ECA nos artigos 48 e 100, segue uma trajetória semelhante e vem ganhando cada vez mais força. O Instituto celebra o acesso de pais e filhos adotivos à trajetória de vida anterior à adoção, que num bonito cruzamento de histórias, também passa a constituir a identidade daquela família.
Por Débora Vigevani, coordenadora do programa Fazendo Minha História