No dia 16 de setembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Trabalho em rede e garantia dos direitos da pessoa com deficiência”, que contou com a participação dos especialistas Kezia Paz, graduada em Musicoterapia pela FMU, trabalhadora do SUS e do SUAS e atuante no atendimento clínico a crianças e jovens com diferentes deficiências, e Juliana Flor Silveira, psicóloga formada pela PUC-SP, com histórico de atuação nas políticas públicas de assistência social e de saúde e que hoje atua no Capsij da Vila Maria como psicóloga e articuladora de rede de saúde mental.
Juliana iniciou com uma citação da psicóloga Yara Sayão, falando como os que atuam nessa área são herdeiras e herdeiros de sonhos, lutas e indignações de muita gente e que têm a missão de garantir os direitos das crianças e dos adolescentes e se implicar na construção de um mundo mais justo, enfrentando um modelo de sociedade de desrespeito, de silenciamento e de medicalização da infância e da juventude.
Em seguida, Kezia assumiu a apresentação, chamando para a proposta de criação conjunta do perfil de Carolina, uma criança hipotética, que pudesse acompanhar o grupo durante a oficina, de forma que os pontos discutidos fossem pensados a partir da história dela. Os participantes colaboraram nessa construção, trazendo elementos das crianças com as quais trabalham e perpassam suas experiências: criança de 9 anos, negra, em situação de acolhimento institucional, junto de seus dois irmãos, de quem cuida. Tem síndrome de Down, seu pai está recluso, sua mãe desempregada e não recebe visita de nenhum familiar.
Kezia apresentou então as bases referenciais das quais parte para pensar as crianças e adolescentes, enfocando-os como sujeitos de direitos, que devem ter vez e voz e que precisam ser reconhecidos de maneira singular. Contrapondo a um modelo histórico de pensar a deficiência por uma ótica patologizante e medicalizante, abordou a importância de considerar que essas crianças têm uma história, características, gostos e preferências, o que muitas vezes passa despercebido quando pensamos nessa temática. Ela retomou a deficiência intelectual de Carolina, personagem construída pelo grupo, para demonstrar como outros marcadores vão se sobrepondo às experiências e histórico de vida dela quando a narram e como cabe substituir esse olhar por um modelo social de se pensar a deficiência, no qual o diagnóstico não seja determinante de suas vivências como um todo.
A especialista lembrou também que, ao pensar o cuidado a crianças e adolescentes, temos que considerar os vários atores envolvidos e que devem ser responsabilizados: a família, a comunidade, a sociedade e o poder público (estado). Buscando aproximar a reflexão da prática dos participantes, ela convocou o grupo a olhar para as experiências dentro do acolhimento e questionou: o que podemos pensar para construir o cuidado de uma criança que chega com características como a de Carolina? Que recursos sentimos necessidade? A partir dessas indagações, os participantes foram trazendo uma série de pontos que envolvem o relacionamento direto com a criança e como acionar outros atores, como a escola e a rede de proteção. Surgiu a importância de tirar a responsabilidade que ela assume frente aos irmãos, de proporcionar experiências de brincar, de conhecer Carolina, do que ela gosta e quais seus sonhos, dentre outros aspectos.
Kezia finalizou sua fala trazendo a relevância de ampliarmos o olhar ao lidar com as crianças e adolescentes com deficiência, questionando o que compreendemos como recursos necessários para a garantia do cuidado. Ela ressalta como, de maneira geral, os recursos que prevalecem estão vinculados às questões de infraestrutura, de aspectos materiais e de recursos humanos e que precisamos abranger outras dimensões, que dizem respeito às relações que se estabelecem entre sujeitos. Abordou, então, um saber que vai se criando no processo com a criança, associado aos seus desejos, vontades e perspectivas de construir coisas. Devemos disponibilizar espaços para pensar esses caminhos potentes que as crianças levam com elas, muitas vezes esquecidos frente a um cotidiano no qual temos de dar conta de tantas tarefas, atravessados também pelo desmonte de políticas públicas
Juliana assumiu, apresentando que seu foco seria no trabalho em rede e que, para tal, achava interessante começar trazendo o seu conceito, fundamental para nortear a prática. Escolheu, assim, a definição de Ricardo Teixeira, médico sanitarista importante para a saúde pública brasileira, abordando a rede como a junção de pontos diferentes que se conectam e que, nesse encontro, produzem algo que nos interessa. Apenas o agrupamento de pessoas que atendem em conjunto ou o encaminhamento para outros serviços não necessariamente compõem uma rede e precisamos olhar para a potência dessa relação. Quando pensamos no campo da atenção à criança e ao adolescente, o que podemos produzir é o próprio cuidado, a saúde, o fortalecimento da autonomia e a garantia dos direitos, produções estas imateriais e que nos interessam por oferecer a possibilidade de uma vida para os sujeitos.
Em seguida, a especialista provocou ao abordar como uma rede não é por si só potente, já que ela é construída por pessoas e depende das escolhas e apostas que são feitas, podendo produzir adoecimentos, como é o caso da rede de patologização da infância. trouxe que se faz necessário uma série de perguntas, ao se estruturar a prática: que afetos essas crianças mais desafiadoras nos provocam? Quando entra uma criança carregada do estigma da deficiência, o que convocamos dos serviços? Reforçou que não falamos de apenas uma infância ou uma deficiência, mas de uma diversidade de possibilidades e de construções de mundo, questionando que lugares são esses que diferentes infâncias ocupam em nossa sociedade, impactando, inclusive, o acesso aos direitos básicos.
Juliana também pontuou a importância de nos atentarmos ao que fazemos quando falamos em rede, identificando pistas para aproveitar a sua potência e maximizando a existência das pessoas que prezam pelo cuidado e garantia de direitos das crianças e adolescentes. É fundamental a conexão entre todos os pontos desta rede, sem o estabelecimento de hierarquias de saber e incluindo o saber da população sobre ela mesma. Quando, por exemplo, não incluímos os educadores, as crianças e as famílias no processo de construção do Plano Individual de Atendimento (PIA), como seu fio condutor, incorremos nos riscos de fazer um trajeto que não contemple, de fato, a existência desse público.
A especialista terminou abordando que é preciso convocar os atores da rede, com coerência e organização, de forma a construir um “ninho de cuidado” para as crianças e adolescentes que chegam ao acolhimento, circunscritos de violência e de uma série de direitos violados. Para uma rede intersetorial e efetiva, é essencial fortalecer a comunicação e o trabalho integrado entre os diferentes serviços, conhecendo as potências do território, de cada um de seus equipamentos e seus movimentos de fortalecimento de autonomia, assim como os pontos desafiadores.
Em um segundo momento, as especialistas dialogaram com os participantes da oficina, respondendo às perguntas e considerações trazidas acerca da temática. Muitas das questões que surgiram eram relacionadas aos desafios na parceria e na comunicação principalmente com as escolas e à necessidade de um laudo para que as crianças e adolescentes acessem aos serviços e aos seus direitos. As especialistas trouxeram para a reflexão os cuidados necessários ao se construir hipóteses diagnósticas, e como muitas vezes elas vêm desconectadas da realidade, para atender uma demanda do território que não tem estrutura para lidar com as necessidades de expressão das crianças e adolescentes, impedindo, assim, a possibilidade de se surpreender com a vida que está lá para ser cuidada.