No dia 22 de novembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Pensando violências: modos de perceber e reflexões sobre a escuta”, que contou com a participação das especialistas Beatriz Saks Hahne, psicóloga pela PUC-SP, mestre e doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e atuante com juventudes em contexto de violências e em cumprimento de medidas socioeducativas, além da formação de profissionais, e Arlete Salgueiro Scodelario, psicóloga, psicanalista, especialista em Violência Doméstica pelo Lacri/IPUSP, coordenadora da Área de Formação do Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) e docente do Instituto Sedes Sapientiae.

Beatriz inicia a sua fala propondo a escolha de uma direção para se pensar violência nessa oficina, considerando que essa questão tem muitas entradas e, assim, nos convida a imaginar possíveis escutas das violências com crianças e adolescentes dentro do trabalho que fazemos. Em seguida, para que os participantes compreendam de onde ela parte para tecer suas considerações. apresenta um pouco de sua trajetória profissional, atuando com medidas socioeducativas em meio aberto, também como coordenadora de cursos de qualificação profissional, supervisora e pesquisadora nesse tema.

Ela aborda, então, como foco atual de suas pesquisas, a partir dos encontros com adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, o tema da conversa, pensada como uma produção, um acontecimento, exigindo a sustentação da desafiadora posição do não saber tudo e de um olhar individualizado para o outro. Reforça como as crianças e adolescentes com os quais trabalhamos, quando chegam, já viveram muitas formas de violência, que aparecem como efeito em suas relações. Agir violentamente pode ser um modo de dar conta de uma violência vivida e que ainda não encontrou outras formas de lidar. Além disso, eles não têm garantidas condições mínimas para o exercício da vida digna e cidadã e são atravessados por diferentes desigualdades, as quais deixam marcas que vão dificultando que outras relações mais saudáveis possam ganhar espaço.

A partir desse contexto, Beatriz traz a necessidade da disposição de mais energia nessas relações com essas crianças e adolescentes, seja cumprindo medidas socioeducativas, seja nos serviços de acolhimento, investindo para que os direitos sociais sejam garantidos e para que se considere de fato o que cada um deles pede, e não só continuem vivos, mas desejando a vida. Ela atenta para o quanto de expectativa é depositada nas crianças e adolescentes, exigindo deles que mostrem que mudaram de comportamento para que sejam reconhecidos pelos adultos, e quando não atingem o esperado, é como se nada tivesse acontecido e a primeira chance fosse a última.

 

A especialista, então, defende a possibilidade de sermos acompanhantes daquilo que as crianças e adolescentes vivem, apostando que podem se movimentar em direção ao que os conecta a uma vida boa, ao descobrir o que isso significa para eles, já que essa é uma concepção singular a cada um de nós. Reforça o quanto esse movimento não é pouco, uma vez que dá a eles a oportunidade de pensar, que é uma das primeiras coisas que lhes é tirada. Fazer uma defesa pela vida implica criar campos de conversa onde não só o que parece faltar ao outro possa aparecer, mas também suas dúvidas, medos, ansiedades, amizades e amores. São intervenções que nascem por meio da palavra e que contribuem para alargar o contato deles com o mundo, considerando que a realidade que vivem tem sido muito dura, permeada por muitas violências, que os fizeram acreditar que é impossível viver experiências em que sintam desejados para que possam se fortalecer e cuidar de si.

Beatriz também aponta como, muitas vezes, o contexto de trabalho, considerando uma rotina extensa, as ocorrências que não findam e equipes reduzidas e cansadas, dificulta que esses espaços de escuta ocorram. Aborda a relevância de, nesses casos, descobrir, em conjunto, momentos de escuta, investigando quais elementos permitem que a conversa aconteça e indicam nosso interesse em estar lá escutando o outro. Há algo que acontece nesse encontro que não se antecipa, que implica a aposta em caminhos incertos, mas que é possibilitado por certa qualidade de presença e de engajamento consigo e com outro. 

Ao longo de sua fala, ela apresenta exemplos de situações que acompanhou, reiterando como cada experiência precisa ser reconhecida em função de quem vive, de onde se passa, com quem e qual o tempo histórico. Afirma a necessidade de nos colocarmos em uma posição de permeabilidade diante dessa criança ou desse adolescente, de uma disponibilidade para ser afetado perante o que não podemos controlar. O dispositivo da conversa pede um encantamento e um interesse pelo outro, mas a violência tende a nos ensurdecer, quando buscamos a razão do seu cometimento: precisamos evitar de nos lançarmos em uma máquina de perguntas e respostas, que diz o que pode e o que não pode, o que é e o que não é.

Beatriz finaliza sua fala, abordando como, ao conhecer e discutir com o outro a sua história, incluindo também outros campos onde sua biografia circula, podemos ajudá-lo a produzir saberes sobre si, assim como a questionar racionalidades que brigam contra a vida, como o racismo, assumindo uma postura de valorização de quem fala e de estranhamento e não naturalização das violências. Cabe, então, a quem se engaja nesse trabalho, um esforço para que se ocorra a escuta singular de cada um, considerando que é dentro da história pessoal, sempre atravessada pela social, que se descobre o que é preciso para uma vida seguir em frente, não repetindo aquilo que já conhece ou o que já se viveu. O que não se faz sozinho, mas dentro de uma equipe que fortaleça suas condições de trabalho e de pensamento, pois fora de um contexto de cuidado fica difícil criar maneiras de cuidar.

Arlete inicia apresentando o seu trabalho como supervisora e formadora, tendo em vista a transformação de valores e a criação de condições para que se antecipe às situações de violência, principalmente em suas formas mais graves. Em um primeiro momento, ela aborda, de forma mais ampla, o tema da violência, a conceituando como o uso de força física ou de poder, em ameaça ou na prática, contra si, outra pessoa ou um grupo, que possa resultar em sofrimentos, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação. Ela pontua que a violência se torna visível quando o que consideramos diferenças se transformam em desigualdades, em uma relação assimétrica e hierarquizada de poder: no caso das crianças, de sujeitos em desenvolvimento, passam a ser objetos com quem os adultos fazem o que querem. Ao apontar uma tendência à naturalização dessas violências e ao não envolvimento de quem está de fora, Arlete chama a responsabilidade de todos em garantir a proteção da criança e do adolescente.

Em seguida, a especialista conceitua algumas formas nas quais a violência pode se apresentar e ser vivida pelas crianças e adolescentes que chegam ao acolhimento: negligência, abandono, trabalho infantil, violência psicológica, física, sexual e institucional. Ela também traz dados estatísticos para uma leitura mais ampla da violência contra a criança e o adolescente e para a sua compreensão enquanto um fenômeno complexo e de múltiplas causas. Entre os aspectos levantados destacam-se a prevalência de casos intrafamiliares na violência sexual, cometida principalmente por homens e que tem como principais vítimas as mulheres, inclusive bebês; casos esses muitas vezes não notificados, não garantindo sua proteção.

Em um segundo momento, Arlete foca no olhar para o profissional diante de situações de violência, compondo a rede de proteção. Parte de algumas questões: como desenvolver uma consciência crítica e transformar esses valores que levam à banalização da violência? Qual a importância da rede de profissionais nas transformações de situações de violência e na proteção de crianças e adolescentes, para que possam pensar em um projeto de vida e não de sofrimento? Ela ressalta como essa escuta tem que se ampliar às famílias, considerando que as situações de violência podem se repetir por gerações e estarem submetidas a um pacto de silêncio. Apresenta os quatros passos que os profissionais precisam dominar: identificação da violência, a percebendo e nomeando; sua notificação, rompendo com pacto de silêncio; realização de encaminhamentos necessários; e acompanhamento.

Ela também destaca como estar diante de situações de violência interfere na vida desses profissionais, ao entrar em contato com emoções desencadeadoras de desgaste físico e mental, que podem ser transferidos para outros contextos. A disposição para a escuta precisa permear todos os momentos do profissional com o outro, possibilitando o desenvolvimento de uma sensibilidade para os múltiplos sinalizadores de sofrimento. Pontua como, muitas vezes, a forma como a criança ou o adolescente consegue comunicar um sofrimento que vive, e ainda não pode pensar sobre, é atuando, ou seja, reproduzindo uma violência em seu cotidiano, com as pessoas mais próximas. Nesse sentido, a contratransferência, isso é, a resposta emocional, inevitável, do profissional a uma ação que veio em sua direção, pode funcionar como um instrumento de empatia, ao lhe permitir utilizar seus sentimentos para compreender o que o outro quer lhe dizer e ainda não consegue nomear.

Por fim, Arlete ressalta a importância das situações de acolhimento, representando espaços de segurança e proteção, e da construção de vínculos duradouros, que contribuam para que as crianças e adolescentes enfrentem a vida de forma mais fortalecida.  Reforça o quanto trabalhar com esse tema pode aflorar sentimentos intensos em todos os atores envolvidos, tornando-se essencial a cada profissional se conhecer, a partir dos encontros que estabelece. E o quanto é importante a articulação de toda rede de proteção, promovendo em conjunto um percurso de transformação, no qual todos possam acolher e ser acolhidos. 

Após as falas das especialistas, se abriu um espaço no qual os participantes da oficina puderam dialogar com elas, trazendo questionamentos e considerações, a partir de suas experiências com a temática.

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