O apadrinhamento afetivo é um programa que busca ampliar a rede afetiva de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional, sobretudo aqueles que tenham poucas chances de retorno familiar ou de colocação em família substituta. Nestes casos, o tempo na instituição costuma se estender mais, contando com poucas referências de adultos fora do serviço de acolhimento. O apadrinhamento afetivo busca, então, facilitar o estabelecimento de um vínculo entre essas crianças e adolescentes com pessoas da comunidade que decidem se voluntariar para se tornarem padrinhos e madrinhas afetivas, se envolvendo na rede já existente de cada acolhido. Ao ingressar, os adultos se comprometem com a construção dessa relação, dedicando tempo e atenção aos seus afilhados(as), com o intuito de ser um suporte e referência afetiva para eles(as) a longo prazo.

As relações de apadrinhamento no contexto socioassistencial provavelmente datam da própria fundação das instituições de acolhimento existentes na virada dos séculos XIX e XX. Para entender melhor como se dão as relações entre madrinhas/padrinhos e afilhados(a) nesse contexto, é importante retomar a história das instituições de acolhimento do nosso país, para assim compreender como o apadrinhamento faz parte dessa conjuntura e de suas transformações.

Como se sabe, as primeiras destas instituições eram, em sua maioria, Casas de Misericórdia de ordens católicas, tinham forte cunho caritativo, filantrópico e religioso, e o trabalho assistencial ainda não era entendido como uma responsabilidade do Estado. Um outro acontecimento fundamental que se aproxima da maior disseminação destas instituições foi a abolição da escravatura no Brasil, oficializada em 1888, como resultado de um longo processo de resistência e organização social e política das pessoas negras escravizadas ou libertas, para além das pressões político-econômicas estrangeiras daquele momento.

A abolição da escravatura, no entanto, aconteceu sem qualquer tipo de reparação social ou indenizatória para a imensa população de escravizados negros, que ao longo de quase quatro séculos foram submetidos ao trabalho forçado nas terras e casas de senhores brancos, reduzidos à condição de mercadoria e sem direito algum. Destacamos aqui esse fator, porque ele teve como uma de suas muitas consequências a própria organização social brasileira, até hoje marcada e estruturada enormemente pelas profundas desigualdades de acesso a todo tipo de bens e direitos.

Se olharmos para dentro das instituições de acolhimento, desde sua origem até os dias atuais, percebemos que a grande maioria dos atendidos são filhos de famílias em desproteção social e negros ou pardos. Essa realidade se dá como reflexo da herança colonial escravista do nosso país que, sem amparar com direitos e políticas públicas específicas para inserção social dos ex-escravizados e suas famílias, deixaram-os à mercê de uma condição de extrema pobreza e desproteção: sem trabalho (ou em condições sub humanas e informais de trabalho), sem moradia, educação e lazer.

Além disso, a lógica eugenista e higienista[1] da época restringia a circulação dessas famílias nos centros da cidade. Assim, pouco a pouco, ex-escravizados ficaram com circulação circunscrita às margens e periferias da cidade. Nas décadas seguintes à abolição, a realidade dessas famílias e suas crianças e adolescentes era essa, somada com o racismo e estigma social, que os viam como sub-humanos. Sem investimento e legislação para lhes prover os direitos e cuidados necessários, a iniciativa proposta para dar conta ao problema social referente à população infanto-juvenil da época foi a criação do Código de Menores, em 1927. 

Essa legislação propunha um atendimento em grandes orfanatos, reunindo lá todas as crianças e adolescentes tidos como "em situação irregular". Eram chamados de “menores em situação irregular” os que tinham menos de 18 anos de idade, que se encontravam em situação de abandono, vítimas de maus-tratos, em perigo moral, desassistidos juridicamente, com supostos “desvios” de conduta e também os autores de atos infracionais. Essa instituição se pautava pelo modelo de uma instituição fechada (as chamadas “instituições totais”), à semelhança dos manicômios, conventos e prisões, segregando todas as crianças e adolescentes do convívio com a comunidade e sem trabalho algum de aproximação com sua família. Existia nesse momento uma forte associação entre pobreza, raça e “delinquência”, encobrindo, dessa forma, as reais causas das dificuldades vividas por essa população.

O Código não propunha uma legislação voltada para proteção à população e estratégias de enfrentamento para problemas sociais estruturais, mas sim um instrumento de controle, que transferia para o Estado e instituições religiosas a tutela dos “menores em situação irregular” e, assim, retirava crianças e adolescentes, em sua maioria negras, da circulação social e, consequentemente, da sua convivência familiar e comunitária. Nesse período, a ação do Estado sustentou e aprofundou a desigualdade social e de direitos.

 No entanto, vale a reflexão de que nem todas as crianças e adolescentes eram vistas por esse prisma: existia uma distinção daqueles que eram considerados os "menores" e as outras crianças e adolescentes, que vinham de famílias de outra classe e raça. No imaginário social, aqueles que estavam dentro dos orfanatos eram crianças abandonadas ou adolescentes "perigosos" e "delinquentes", recebendo o tratamento ora pela via da piedade, filantropia e benemerência, ora pela condenação e marginalização.

Com o passar dos anos, diversas iniciativas estatais foram promovidas a partir da doutrina da situação irregular com o objetivo de atender aos chamados “menores”. Em 1941 é criado o Serviço de Assistência a Menores (SAM), órgão federal ligado ao Ministério da Justiça que atendia os “abandonados” e “desvalidos”, encaminhando-os às instituições da época. Em 1964, após o Golpe Militar, o SAM acaba sendo substituído pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), sendo também criada a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, ambos responsáveis pelas ações na área. Nesse período, a questão da infância passa a ser tratada como problema de segurança nacional.

Nos diferentes estados, foram sendo criadas as FEBEMs, órgãos executivos responsáveis pela prática das orientações elaboradas pela FUNABEM, por meio do atendimento direto às crianças e adolescentes. Em 1979 é promulgado o segundo Código de Menores que, apesar de algumas mudanças, baseava-se no mesmo paradigma do “menor em situação irregular” da legislação anterior.

No fim da década de 1980, em consonância ao movimento de redemocratização do Brasil, muitas mobilizações sociais começaram a ganhar espaço. Nesse momento, ganhou força um movimento da sociedade civil que demonstrava grande insatisfação com o Código de Menores, visto como ineficaz e perverso, mobilizando assim a construção de uma nova lei. Foi a partir desses movimentos que se construiu, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A nova legislação inaugura a proposta de compreender mais profundamente as demandas da população infantojuvenil e proteger todas as crianças, os adolescentes e as famílias, incluindo aquelas que até então eram estigmatizadas e/ou segregadas pela antiga lei.

Nesse novo paradigma surge a Doutrina de Proteção Integral, na tentativa de garantir os direitos fundamentais inerentes à população infanto-juvenil, em corresponsabilidade pela família, pelo Estado, em todas as suas esferas e, ainda, pela sociedade civil e comunidade em que a criança/adolescente vive. Assim, todos são responsáveis não somente para que atuem na defesa dos seus direitos, mas também proporcionem meios para concretizá-los.

Diferentemente da antiga legislação, o ECA estabelece que todas as crianças e todos os adolescentes são sujeitos de direitos. Essa mudança tem uma relevância fundamental no posicionamento do Estado, pois esse passa a se responsabilizar por políticas para o desenvolvimento pleno dessa população e, dessa forma, prevenir que elas sejam retiradas do convívio familiar e comunitário, hoje visto como condição fundamental para seu desenvolvimento. Após a promulgação do ECA, foram pensadas e criadas outras regulamentações e políticas para a infância e adolescência que reforçam essa premissa da convivência familiar e comunitária, como o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006), as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (2009), e a Lei 12.010 (2009).

 

Ao reformular a legislação e as políticas, se estabeleceu que a separação das crianças, adolescentes e suas famílias deve ser a última medida a ser tomada e, quando tomada, deve ser provisória, assegurando oportunidades para seu desenvolvimento integral e garantia de direitos básicos, como a convivência familiar e comunitária. No entanto, o caráter institucional do serviço muitas vezes desafia que isso aconteça. Por isso, se faz necessário considerar a complexidade da estrutura histórica dessa instituição para pensar estratégias que possibilitem a relação e o vínculo dessas crianças e adolescentes com sua comunidade e família.

Diante dessa percepção, e dos desafios que enfrentamos enquanto sociedade para avançar de forma coerente com todas as propostas e avanços que se suscitaram a partir do ECA e das regulamentações e políticas que vieram depois, o Programa de Apadrinhamento Afetivo começa a ganhar espaço, corroborando e dando amparo para a legislação vigente.

Mesmo enquanto uma medida de proteção provisória, há ainda um número gritante de crianças e adolescentes que permanecem em situação de acolhimento por muitos anos. Isso se dá por alguns motivos e fatores. Para compreender essa não provisoriedade da medida, nos debruçaremos aqui nos desafios estruturais do amparo às famílias em situação de extrema vulnerabilidade social. Há muito que as políticas públicas propostas não dão conta de amparar de forma efetiva grande parte da população. Dessa maneira, muitas famílias enfrentam dificuldades para se organizar e acessar direitos básicos de sobrevivência (moradia digna, alimentação, saúde, educação, trabalho, lazer), quem dirá para seus filhos e filhas. Podemos compreender, então, que há um trabalho - e uma responsabilidade - com as famílias, crianças e adolescentes que precede a necessidade de do acolhimento, e é pela ineficácia desse trabalho prévio do Estado que muitos acolhimentos se dão. A pobreza, como sintoma de uma sociedade desigual, é um caráter que não deveria ser - conforme o ECA - um motivo para retirada de uma criança ou adolescentes do seio familiar, mas ela acaba se enredando com outros fatores (como a falta de acesso e amparo do Estado) e se concretizando como um índice relevante enquanto motivo de acolhimento.

Diante disso, sem amparo social, muitas famílias demoram muito mais que 18 meses - como previsto no ECA -  para conseguir se reorganizar e receber seus filhos e filhas de volta. O que torna a vivência nas instituições de acolhimento duradoura e muitas vezes sem perspectivas de retorno familiar.

Independente da duração do período de acolhimento, a Rede de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente precisa garantir os direitos básicos de quem está acolhido, assegurando-lhes o desenvolvimento integral através da convivência familiar e comunitária e muitos outros direitos. E é neste ponto em que apresentamos o programa de Apadrinhamento Afetivo, enquanto uma das estratégias para assegurar o princípio da convivência familiar e comunitária aos meninos e meninas que possuem longa permanência nos serviços de acolhimento.

Essa prática de “apadrinhar” já acontece há tempos dentro das instituições. herança religiosa do Cristianismo que os termos madrinha e padrinho carregam.  De forma espontânea, cidadãos da sociedade civil vem buscando se voluntariar e se solidarizar com a causa dessas crianças e adolescentes institucionalizados. Muitas vezes sem conhecimento da realidade do acolhimento e da proposta da legislação vigente, a piedade e o  compadecimento frente a essas crianças e adolescentes acabam sendo o principal fator de mobilização social.

Por intermédio do ato de apadrinhar, muitas relações entre adultos e crianças e adolescentes se formaram e se concretizaram. Ora de forma espontânea e duradoura, ora de forma mais pontual e caritativa. O que nos é importante grifar aqui, é a relevância que relações afetivas mostram ter na vida de crianças e adolescentes que por inúmeros fatores, os quais alguns já apresentamos no texto, não podem retornar para suas casas.

Sem se propor a substituir a família de origem ou a articulação da rede de atenção de cada criança e adolescente, ofertar programas de Apadrinhamento Afetivo torna-se, então, uma estratégia potente a fim de ampliar a rede sócio-afetiva de crianças e adolescentes com longa permanência em instituições de acolhimento, facilitando meios para constituição de novos vínculos de natureza afetiva.

Acreditando no poder dos vínculos afetivos e todas as possibilidades construtivas que estes trazem, elaboramos um programa de Apadrinhamento Afetivo, apostando na ideia de que esses adolescentes e crianças possam ser olhados, amparados e afetados por relações sinceras de troca afetiva. Relações em que o olhar do adulto-padrinho devolve ou oferece meios para que esse jovem acredite e consiga enxergar de forma mais clara outras potencialidades e possibilidades sobre si e sua própria construção de vida e autonomia. Esse é o poder do vínculo afetivo.

Assim, a história do apadrinhamento afetivo caminha junto com a história de nosso país. Ambas possuem importantes marcadores que não podem ser deixados de lado, como questões relacionadas à classe, raça e outros. Se antes visto como algo de ordem caritativa e financeira, hoje a relação de apadrinhamento caminha para que possa ser entendida cada vez mais como um compromisso social de ordem afetiva. É a partir da criação do vínculo entre adulto e criança/adolescente que se cria uma potência transformadora não apenas para a história de vida de cada um, como também para a história do nosso país. Vamos transformar essa história?

[1] Eugenia e higienismo como compreensão de superioridade racial de ordem genética/natural, justificando assim ações sociais de descriminação e exclusão de pessoas negras.

Batsheva Siqueira, Gabriela Medeiros, Iara Caldeira, Julia Condini e Juliana Barbosa (Equipe Apadrinhamento Afetivo)