No dia 13 de Abril de 2022 o Instituto Fazendo História realizou a oficina presencial com o tema: “Saúde Mental e Medicalização - como cuidar no acolhimento?”, que contou com a participação das especialistas: Fernanda M. P. de Resende, médica psiquiatra formada pela USP, mestra pela UNIFESP, trabalha na saúde pública desde 2007, em CAPSiJ e NASF, e, Luana Marçon, terapeuta ocupacional, mestra e doutoranda pela UNICAMP, na área de Política, Planejamento e Gestão.
A abertura da oficina se deu com a fala da psiquiatra Fernanda comentando que os maiores especialistas são as crianças e os adolescentes uma vez que são eles que vivenciam cotidianamente o sofrimento, Fernanda fala da importância de ter seu percurso profissional no SUS, e que a partir dessa experiência encontra outras formas de cuidar dos pacientes infanto juvenis para além da medicalização. Comenta que seu trabalho está na contramão da medicalização de crianças e adolescentes, enfatizando os seguintes pontos: o perigo da patologização precoce, considerando a idade, as fases do desenvolvimento daquele sujeito, a história de vida, o contexto no qual ela está inserida, a cultura e a socialização.
A especialista conta que a questão da medicalização não se trata apenas de administrar “essa” ou “aquela” medicação, devendo-se considerar todos os fatores acima descritos. Fernanda citou o exemplo do uso excessivo da Ritalina, reforçando que há estudos tanto no Brasil como nos Estados Unidos que seu uso está em uma porcentagem muito alta. Alerta sobre o perigo de profissionais e familiares por essa busca desesperada por um diagnóstico, sendo que pode haver profissionais que avaliam sem a devida atenção e cuidado que esse paciente merece, questionando a necessidade de na primeira consulta a criança já ser medicada.
Fernanda também aborda o uso excessivo da Ritalina e da Risperidona, uma vez que não existem estudos suficientes sobre os efeitos desses medicamentos em crianças. Os adultos passam a buscar incessantemente rótulos, como o TDAH, que é aquela criança agitada, que não para na cadeira, tem dificuldade em se concentrar, tem dificuldade na aprendizagem, não estuda muito, mas tanto na realidade dos serviços como fora dele, não é difícil encontrar crianças assim. A criança tem muita energia, é corpo, é movimento, e qual tem sido o benefício ofertado para as crianças e adolescentes quando introduzimos a medicação? Será que a criança está em sofrimento ou será que são os adultos que não estão conseguindo lidar com seus comportamentos? Existe uma cultura que diz que devemos interditar as crianças.
Para tanto, a especialista traz o DSM V, que define as categorias (classificações diagnósticas), mostrando o quanto tem aumentado o número de diagnósticos na infância, e como tais critérios vão se alargando, e mais pessoas foram entrando no diagnóstico, como por exemplo o autismo, e vão escalando em níveis, tais como: leve, moderado e grave, entre outros transtornos mentais, como depressão, ansiedade, TDAH.
Fernanda comenta que na década de 60/70, houve um avanço no estudo da infância, e cada vez mais as famílias vão se sentindo pouco autorizadas a cuidar das crianças, buscando por especialistas, por psicólogos e etc, perdendo assim a capacidade de cuidar de seus filhos. Ela também cita como o neoliberalismo influencia diretamente no processo de medicalização, e o quanto esse sistema vai definindo algumas formas de viver, de nos portar, de nos comunicar, incentivando o individualismo e exigindo que o sujeito tenha performance. O aumento do uso de Ritalina vem para aumentar a performance, passando a ser usado por universitários, porque isso aumenta a concentração, mesmo sem eles terem algum tipo de diagnóstico, uma vez que a sociedade passa a olhar para o sujeito como alguém que precisa entregar resultados, mesmo com os riscos do uso.
A especialista também destaca o avanço da psiquiatria biológica a partir da década de 50, que começa a desenvolver os medicamentos e gera uma “febre” com a possibilidade mudar o comportamento das pessoas com determinada medicação. A indústria farmacêutica investe e ganha muito com isso e as pesquisas de novas medicações são patrocinadas pela indústria farmacêutica. Importante ressaltar que muitos medicamentos não possuem estudos dos efeitos de dependência e as pessoas não conseguem largar, alertando que deve existir uma cautela no uso de qualquer medicação.
No final de sua fala ela traz um trecho do filme System Crasher, na tradução do Brasil “Transtorno Explosivo”. O vídeo traz uma criança que tem questões de agressividade e é acolhida, por sua mãe não conseguir lidar com seus comportamentos, e então passam a olhar e cuidar dela como uma criança que possui questões de saúde mental e deixam de considerar sua história. Fernanda finaliza dizendo sobre os efeitos colaterais das medicações, a curto prazo e a longo prazo, impacto na subjetividade e controle dos corpos. Efeitos a curto prazo: sonolência, diminuição de apetite, dificuldade de concentração, apatia. Enfatizou o quanto se perde da infância quando a criança toma medicação - o contato com a fantasia, com o sonho e com o onírico. A longo prazo: muito ainda não se sabe, mas pode ter alteração no crescimento (abaixo do esperado), pouco ganho de peso, ginecomastia (crescimento dos seios tanto em meninas como meninos), alteração dos movimentos, tremores, assim como questões neurológicas e comportamentais, sem contar o impacto na subjetividade, o quanto a criança se sente incapaz de lidar com seus próprios conflitos, porque ainda está em desenvolvimento.
Em seguida, a especialista Luana inicia sua fala mencionando que poderia discorrer sobre ter sido uma criança diagnosticada na infância e o quanto a escolha de sua profissão (Terapia Ocupacional) tem a ver com a proximidade de sua mãe em serviço de acolhimento. A especialista convoca os profissionais ali presentes a se reverem enquanto sujeitos que darão possibilidades para que as crianças se expressem em suas diferentes singularidades, e o quanto os adultos (nós), estamos reduzindo a nossa capacidade de pensar e fantasiar junto - a infância pode ser um lugar que está em todos nós. Luana destaca que tanto ela quanto Fernanda partem do princípio que existem crianças que possuem sofrimento psíquico grave e crianças em processo de adoecimento mental. Porém, apesar de existirem essas crianças, muitas vezes elas não têm acesso ao tratamento. Mesmo assim, em nossa sociedade, estamos medicando um número cada vez maior de crianças que não possuem nenhum tipo de transtorno mental e isso inverte o nosso problema, traz um modo empobrecido de pensar a infância e as possíveis soluções. A especialista provoca o público a ler poesias, autores que tirem desse lugar do não pensar além.
A questão da medicalização atinge todos nós, mas o eixo de crianças e mulheres é atingido de forma brutal e voraz, e se faz necessário fazer um recorte social - de classe, raça e gênero, pois enquanto algumas crianças, adolescentes e mulheres estão buscando acesso, em outros lugares esse mesmo público possui acesso sem dificuldade. De qual lugar falamos? Precisamos compreender que esse lugar do qual estamos olhando para as crianças e adolescentes está envolto de um período histórico e político, pautados por contingências sociais a partir dos marcadores citados. É preciso lembrar que no meio disso tudo a sociedade também exige que essa criança seja um “futuro vencedor”, e aí nos deparamos com o fracasso dessa equipe que não consegue educar e formar de forma suficiente essas crianças e adolescentes, que de alguma maneira já são estigmatizados por essa mesma sociedade.
Luana continua trazendo a importância de historicizar o campo infanto-juvenil e questiona como a psiquiatria começa a se interessar pelas crianças. Diferente do adulto que a psiquiatria vai investigar quem é o louco, no campo da infância a psiquiatria se interessa pelo “vagabundo”, a figura da criança que não pode ser inserida no aparelho social, a que não dá certo na escola, que não cumpre um destino e um projeto familiar. Devemos nos ater nesta premissa para entendermos do ponto de vista institucional que estamos cuidando de algo que foi produzido no século 19. Ainda não há uma preocupação sobre a loucura da criança, mas sim de corrigir o vagabundo e a idiotia, aquelas crianças que não tem capacidade de aprender, que não vai cumprir um futuro no trabalho. A psiquiatria está preocupada com as instituições totais que vão dar conta dessas crianças, a partir do código de menores, pensando em cumprir um determinado papel que é “punir e disciplinar.”
Quando falamos de medicalização, não estamos falando apenas do olhar do especialista - todos nós somos em algum nível convocados a narrar a partir de uma linguagem psicológica e psiquiátrica. A especialista dá um exemplo destacando que algumas palavras desapareceram do nosso vocabulário, como angústia, crise existencial, essas palavras foram substituídas por: ansiedade, depressão, insônia, etc. Pontua que o problema da medicalização diz respeito também a um problema de linguagem, que não cabe somente ao médico especialista, mas de uma linguagem que é nossa, trazendo para a responsabilização de todos que “cuidam dessas crianças”. Para tanto, precisamos convocar o especialista, e todos nós a olhar a criança como um espaço potencial de risco, citando a primeira infância, onde nesses três primeiros anos tudo pode emergir, seja no que diz respeito ao comportamento, qualquer questão genética e do desenvolvimento. Nossa responsabilidade é evitar danos, prevenir riscos e fazer bons encaminhamentos.
Luana fala do esvaziamento do cuidado de um familiar ou de um educador, ao passo que um certo regime de normas vai se expandindo, como - norma de desenvolvimento, norma de escrever normal, o jeito de falar corretamente. Falamos desse lugar do adulto em experimentar cada vez mais destituídos dessa autoridade que se distancia desse regime de normas, e isso gera uma confusão de que cuidar é vigiar. Ela provoca todos a sair desse lugar, para imaginar outros caminhos possíveis.
A especialista também cita o neoliberalismo como um regime que vai olhar as pessoas e as crianças que cuidamos como um investimento, como um futuro capital humano, e o que quer que falte tem a ver com sua falta de capacidade. Este é um regime de determinação e, no momento que estamos debatendo a identidade de gênero, o mundo avança para fazer chá revelação, para determinar se aquela criança vai ser menina ou menino, antes mesmo de nascer, a criança é individualizada antes de nascer e esse cenário restringe muito a nossa capacidade de lidar com crianças em situações difíceis, em adoecimento, em situação de institucionalização ou violência.
Em seguida, Luana trouxe duas situações fictícias para se pensar na realidade e no cotidiano do acolhimento com crianças e adolescentes difíceis, refletindo sobre como os educadores podem narrar suas histórias para além das questões e do diagnóstico. O diagnóstico pode ganhar um lugar e ir destituindo tudo que o que se sabe sobre aquelas crianças e quando direcionamos essa criança para um especialista pode gerar um empobrecimento da subjetividade, dos modos de interação com a infância e também vai destituindo os adultos, os educadores do lugar que eles sabem sobre as crianças. Luana chama atenção para quanto fomos condicionando a necessidade das crianças a laudo, condicionando transporte a laudo, apoio escolar a laudo, mas não condiciona as necessidades materiais, concretas e psicológicas das crianças. Portanto, o diagnóstico e a medicina são importantes, mas não são totalizantes para lidar com a infância.
Ademais, a especialista retrata que no começo do século XX, os estudos estavam focados na sexualidade da criança, criança esta que joga, brinca, provoca. Estamos pensando na sexualidade nesse lugar de vida, que impulsiona, que desobedece, que se recolhe. Atualmente estamos lidando com uma certa mortificação desses atos, havendo um desaparecimento do brincar mais genuíno, sem sentido, um brincar que te lança ao risco, da possibilidade de fantasiar. São nesses momentos que a criança está se preparando para o mundo nas brincadeiras que elas mesmas criam. Será que a infância pode ser ao menos um pouco esse lugar que esse corpo que é adulto já passou e compreende de que lugar a criança fala e se manifesta?
Por fim, foi aberto ao diálogo com os participantes que trouxeram dúvidas e reflexões sobre o tema.
A oficina está disponível na íntegra no canal do YouTube do Instituto Fazendo História:
Parte 1:
Parte dois: