No dia 29 de março de 2018 foi realizada a oficina "Acolhimento na Primeira Infância e as Famílias Acolhedoras” com a participação da socióloga, consultora internacional em Proteção Alternativa e membro do Conselho Consultivo da RELAF, Carolina Alejandra Bascuñán. A oficina também contou com as participações das equipes dos serviços de famílias acolhedoras do Instituto Fazendo História (São Paulo), SAPECA (Campinas) e Casa da Criança e do Adolescente (Valinhos).
Carolina iniciou sua apresentação com as seguintes indagações: por que na América Latina, há crianças e adolescentes que perderam o cuidado de seus pais? Na prática, quais as razões que levam as crianças a serem afastadas de suas famílias? Segundo a especialista, a criança é um ser vulnerável e precisa do cuidado de um adulto, porém as razões que levam ao afastamento familiar variam de acordo com cada país. Ex. no Chile, a maioria das crianças é afastada das famílias devido à negligência, maus tratos, abandono e desamparo, já na Colômbia a separação deve-se ao conflito armado, no Brasil por sua vez, as razões são semelhantes ao Chile, mas também há a questão da dependência de drogas dos pais. No México há o fenômeno da migração das famílias pobres que vão para os Estados Unidos e se afastam dos filhos enquanto buscam melhores condições de vida no país.
Em toda América Latina há uma estimativa de que 240.000 crianças estão afastadas das famílias, porém há muitos países que não possuem estatísticas e este número é considerado subestimado pela socióloga. Para alterar a situação atual, há muitos instrumentos internacionais que contribuem para o desenho de estratégias com o objetivo de alterar a realidade das crianças e suas famílias. Em 2009 foram criadas diretrizes sobre as modalidades de cuidados alternativos pelas Nações Unidas. São orientações para que os governos previnam a separação não necessária das crianças de suas famílias, fornecendo serviços de proteção social. Na prática os governos devem desenvolver programas, políticas e estratégias para que as crianças não sejam separadas de suas famílias. Caso todas as ações sejam esgotadas e não seja possível manter a criança com a família, deve-se buscar uma alternativa avaliada com a melhor para as crianças e não para os governos. Ou seja, nesta perspectiva a prioridade é o desenvolvimento da criança e não aquilo que historicamente os governos já possuem como “soluções” (ex. abrigo institucional). Para contribuir com a discussão, em 2010 houve uma pesquisa intitulada “Better Care Network” que buscou avaliar a situação dos abrigos em todo o mundo.
A pesquisa permitiu concluir que não é possível ter uma dimensão do número de crianças que hoje estão afastadas de suas famílias porque não há um sistema de informação que permita averiguar a quantidade de crianças afastadas, onde elas estão e como estão. Preocupada com este cenário, a UNICEF em 2012 concluiu que pelo menos dois milhões de crianças estão em “orfanatos” (centros residenciais) em todo o mundo e que o atendimento residencial (abrigo institucional) é o formato mais utilizado em diversas partes do mundo. A questão é que os dados disponíveis apontam para o fato de que uma criança afastada de sua família acaba sendo novamente vulnerável a sofrer mais violências, sendo fundamental promover cuidados alternativos de tipo familiar, ou seja, acolhimento familiar.
Para Carolina, os abrigos institucionais devem ser a última alternativa para o cuidado e proteção de uma criança. Um dos aspectos que chama atenção é o fato de muitas crianças estarem em instituições e não saberem por que estão acolhidas e qual a previsão do acolhimento. A socióloga aponta que a maioria desconhece os próprios direitos, como por ex. muitas não sabem as razões da separação da família, que podem falar com um juiz, que podem pedir para receber visitas dos familiares, que têm direito a frequentar uma escola fora da instituição, entre outros. Quando comparadas com adolescentes que cometeram atos infracionais, apesar de estarem em serviços de proteção, sabem menos quais são os próprios direitos e o que podem fazer. Para Carolina, historicamente a situação das crianças em situação de acolhimento foi esquecida pelos governos, ficando relegada às ações assistencialistas, não existindo políticas públicas específicas para este público. Ela também questionou o fato de que a decisão de uma criança ir ou não para um abrigo é geralmente tomada sem que a criança seja ouvida. A lógica está unicamente baseada no que os países possuem como alternativa, que na maioria das vezes são os abrigos institucionais. Outro ponto é que as instituições geralmente estão muito longe das famílias, dificultando a reintegração domiciliar e, na maioria dos casos, a razão do afastamento deve-se à pobreza das famílias (mesmo sabendo que é uma causa ilegítima e que não há crianças ricas em instituições).
Para ultrapassar a lógica atual, as diretrizes das Nações Unidas acabam estabelecendo pelo menos três questionamentos fundamentas para o trabalho com as crianças que seriam afastadas de suas famílias. O primeiro princípio é o da necessidade - a pergunta é: é realmente necessário afastar a criança de sua família? Fizemos todo o possível para que isso não acontecesse? Como autoridade, cidadão, vizinho ou familiar, fizemos todo possível para que a criança não fosse tirada de sua família? A segunda pergunta é: qual a alternativa mais adequada? Este é o princípio de idoneidade – a criança deve ficar com a família extensa? Deve ficar em um grupo pequeno na comunidade? O último princípio é o da excepcionalidade – quando todas as alternativas não funcionaram, a criança é inserida em uma instituição.
Carolina aponta que diferentes pesquisas nos últimos anos têm mostrado que os primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento, sendo que o projeto Bucareste mostrou que o cuidado específico fazia diferença na arquitetura cerebral da criança. A pesquisa mostrou que diante de três tipos de cuidado - crianças afastadas das famílias que ficaram em instituições, crianças afastadas da família que ficaram em acolhimento familiar e crianças da comunidade (grupo controle) -, a criança colocada em uma família antes dos dois anos de vida tinha uma atividade cerebral semelhante a de crianças da comunidade, porém, depois dos dois anos, acaba tendo uma atividade cerebral semelhantes a de crianças que estavam institucionalizadas. Para mostrar a importância do acolhimento familiar em comparação com o acolhimento institucional, a especialista mostrou o vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=NCzse7vlE6o
Para a socióloga, se há dados científicos no mundo e na América Latina de que o cérebro de uma criança que vive em uma instituição de acolhimento tem menos sinapses do que o de crianças que vivem em acolhimento familiar e que seu desenvolvimento global é melhor, por que seguimos priorizando o acolhimento institucional em detrimento do familiar? Segundo Carolina, há uma ideologia política dos governos que acreditam que o Estado deve prover todos os programas sociais e que não é responsabilidade da comunidade o cuidado das crianças separadas das famílias de origem. Para ela, é possível que o Estado continue sendo o responsável, mantendo uma parceria com as famílias/comunidade na execução da política. Também há custos econômicos na mudança de um sistema de acolhimento institucional pelo acolhimento familiar, apesar de que em longo prazo o acolhimento familiar ser menos custoso. Há ainda aspectos culturais relacionados à crença de que as famílias biológicas podem ficar incomodadas com o fato de outras famílias cuidarem de seus filhos, que as famílias acolhedoras podem se apegar em demasia à criança, entre outros.
A segunda especialista a falar foi a psicóloga e coordenadora do Programa de Famílias Acolhedoras do Instituto Fazendo História, Roberta Vialli de Almeida. A especialista iniciou sua fala situando que o reconhecimento da Assistência Social enquanto política pública no Brasil aconteceu pela primeira vez na Constituição Federal de 1988, buscando romper com o paradigma assistencialista/caritativo. Na Constituição a Assistência Social aparece compondo o tripé da seguridade social, formado pela Saúde (prevista como direitos de todos), Assistência Social (mínimos sociais para quem dela necessitar) e Previdência Social (contributiva). Em 1993 é aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social que estabeleceu normas e critérios para a organização da Assistência Social enquanto Política Social e previu a implementação do Sistema Único da Assistência Social – SUAS. Em 2004, teve a aprovação da Política Nacional da Assistência Social que traz a implementação do SUAS, havendo um novo modelo de organização da gestão e oferta de serviços, programas, projetos e benefícios. Também passou a haver a descentralização político administrativa. Com a política, houve a territorialização dos serviços da Assistência Social.
A política também trouxe a organização das proteções sociais, oferecendo serviços e programas que tinham um viés preventivo na proteção básica (ex. CCA que oferece atividades socioeducativas no contraturno escolar) e proteção especial de média (ex. NAISPD) e alta complexidade. O que diferencia a média e alta complexidade é o rompimento de vínculos. Os serviços de acolhimento estão situados na alta complexidade, sendo que o serviço de família acolhedora é uma modalidade de serviço da Proteção Especial de Alta Complexidade (os outros dois são o abrigo institucional e a casa lar). Em 2009 passam a haver três documentos fundamentais para o acolhimento: 1) Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento; 2) Lei 12.010 ECA e 3) Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. É importante destacar que o Artigo 34. parágrafo 1º da Lei 12.010, estabelece que a “inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei”.
Roberta destacou a importância dos marcos legais acima citados para a política da assistência social e do acolhimento familiar. Os números do acolhimento familiar no país mostram avanços, ainda que seja necessária sua ampliação, conforme a figura abaixo:
Em 2015, reconhecendo a importância da primeira infância e da família acolhedora enquanto política pública, o Instituto Fazendo História decidiu implementar um serviço de família acolhedora voltado para a primeiríssima infância. Até hoje 22 crianças já foram acolhidas: seis retornaram para as famílias de origem ou extensa, 7 foram colocadas em famílias adotivas e 9 estão em acolhimento. Atualmente há 10 famílias acolhedoras aptas e qualificadas para exercer o acolhimento, 1 vaga a ser disponibilizada nos próximos meses e 4 famílias foram desligadas após o primeiro acolhimento.
A prática construída nos últimos dois anos pelo Instituto Fazendo História está baseada em princípios fundamentais, como o direito dos acolhidos à sua história. Segundo Roberta, desde o momento em que o bebê chega da maternidade ou de outros locais, há a busca de informações por todos os profissionais que estiveram envolvidos no atendimento da criança. Todas as informações são importantes para ajudar a compreender a história, havendo relatos muito valiosos de todos que passaram pela vida da criança. As falas dos profissionais ajudam a compor a subjetividade do bebê – a fala, o olhar e a ação auxiliarão a criança a se reconhecer enquanto sujeito. Segundo a coordenadora, a investigação e a busca de informações ajudam a desvendar a história da criança e muitas vezes a entender que o motivo do acolhimento é diferente do que o “abandono dos pais”, tão frequentemente citado nos processos. Ex. no levantamento de informações, uma enfermeira contou que uma mãe na maternidade lhe disse que não queria que o bebê tivesse a mesma vida que ela. Se explorarmos a condição da mãe e os possíveis sofrimentos que passou, provavelmente o suposto abandono representou uma tentativa dessa mãe oferecer uma vida melhor para o seu filho e não um simples abandono. Para a história da criança, esta informação pode fazer toda diferença. A psicóloga forneceu outros exemplos relacionados aos casos acolhidos e também mencionou a importância de se respeitar os nomes das crianças escolhidos pelos pais biológicos, que muitas vezes são alterados e chegam com novos nomes atribuídos. A especialista finalizou destacando que os bebes têm história e que merecem ser os protagonistas dela.
Após as duas falas, os participantes da oficina participaram de uma discussão em pequenos grupos sobre a importância da primeira infância e as maneiras que os serviços costumam realizar o trabalho com este público no cotidiano institucional.
No segundo momento da oficina houve a apresentação da metodologia de trabalho de três serviços de famílias acolhedoras: o SAPECA de Campinas que foi representado pela assistente social Adriana Pinheiro e pela psicóloga Ana Carolina, com o tema da captação, formação e seleção das famílias acolhedoras; em seguida houve a apresentação do serviço de famílias acolhedoras de Valinhos que falou sobre o trabalho realizado com a rede do município, sendo representado pela coordenadora do serviço Roberta Cimino, a assistente social Myrian Arndt Silva e a psicóloga Natalia Ferrari Bodini. Por fim o Instituto Fazendo História, representado pela assistente social Sara Luvizotto, abordou o trabalho realizado com as famílias de origem.
No último momento da oficina, Márcia Ribeiro Pinto Ferreira, Alberto Rodrigues Pinto Ferreira e Timothy John Chamberlain conversaram com os participantes sobre a experiência de serem famílias acolhedoras no Instituto Fazendo História.