No dia 24 de agosto de 2023, o Instituto Fazendo História realizou a segunda oficina presencial do Projeto Formação Profissional para o Trabalho com Jovens, com o apoio do FUMCAD (Fundo Municipal da Criança e do Adolescente), no Instituto Pólis. Com o tema “Adolescentes em medida socioeducativa”, o encontro foi direcionado aos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento e também a outros atores da Rede Socioassistencial e do Sistema de Garantia de Direitos da Cidade de São Paulo.
A oficina contou com a participação de Ricardo Rentes, Psicólogo, Psicanalista, Mestre em Ciências Humanas, Sociais e Criminologia pela UFP do Porto – Portugal, Professor dos Cursos de Especialização em Psicanálise Winnicottiana e em Saúde Mental e Saúde Coletiva, ambos pela Universidade Cruzeiro do Sul, e do Curso de Especialização em Psicologia Jurídica pela Universidade São Camilo. Ele atua também como Supervisor nas áreas de Saúde Mental e Assistência Social e é autor do livro: “Os Meninos de Heliópolis - O ser e fazer de adolescentes em conflito com a lei e a sintomática criminal”.
Ricardo inicia sua fala fazendo o convite para que todos os presentes pudessem “alcançar o rosto dos meninos e meninas em conflito com a lei”, os quais se encontram, em função do fenômeno criminal, dentro de um serviço de medida socioeducativa. Propõe um percurso de aproximação de suas vivências, marcas e manifestações e de diálogo com aquilo que ocorre a partir dos olhos desses adolescentes, em um encontro cheio de intenção e direção para o trabalho.
O especialista pontua como, a partir dos 12 anos de idade, o adolescente que cometer um ato que vai contra as normas sociais de convivência é enquadrado como infrator e terá 6 possibilidades de medidas socioeducativas, as quais podem ser desde uma advertência, até a internação, situação de privação de sua liberdade. E que a gravidade desta é marcada por um recorte étnico, social e econômico, de modo que aos mais pobres, periféricos e pretos são reservadas as medidas mais severas. Ele aborda, a partir da apresentação de suas experiências profissionais, como dentro dos Serviços de Acolhimento podemos identificar traços, tais quais embates com colegas, posturas desafiadoras e uso abusivo de substâncias, que podem ser potenciais para o desenvolvimento da criminalidade e de uma vivência posterior em ato infracional, mas que têm algo em comum: uma busca por algo que lhe é de direito.
A partir daí, Ricardo propõe que se olhe para o ato infracional, tido como antissocial, como uma manifestação sintomática, ou seja, um gesto que está dizendo algo. E sugere uma questão para direcionar o olhar: o que esse adolescente quer dizer com aquele tipo de postura? Dialoga, então, com as bases teóricas de Winnicott, um grande pensador da história da Psicanálise que estudou de maneira profunda esse fenômeno, partindo de sua etiologia, de como e porque ele nasce e se desenvolve. Winnicott parte da observação das manifestações de crianças evacuadas de Londres, na segunda Guerra Mundial, as quais tiveram um rompimento abrupto de seus vínculos familiares, sociais e comunitários, para a construção de sua Teoria da Tendência Antissocial. Ele desenvolve a percepção de como a unidade familiar proporciona uma segurança indispensável à criança e a sua ausência ou rompimento pode trazer efeitos ao desenvolvimento emocional e acarretar danos à sua personalidade.
No decorrer do encontro, Ricardo traça paralelos entre essa teoria e a situação de acolhimento: com essa medida, o senso de pertencimento da criança ou adolescente é abruptamente rompido e há necessidade interna de realinhar emocionalmente seu funcionamento para sobreviver nessa realidade, nova e estranha, numa perspectiva coletiva e num lugar ainda de invisibilidade para a individualidade, característica do modelo institucional. Ele aborda como o entrar em uma instituição já é um convite ao adoecimento, por melhores que sejam suas condições: parte-se de uma situação traumática e de violência, com o rompimento do vínculo familiar, que mesmo que considerado tóxico para a criança ou adolescente, faz parte de sua constituição.
Essa perspectiva acompanha todo o caminho percorrido pelo convidado na oficina, norteando o olhar para as crianças e adolescentes institucionalizados e que apresentam sintomas de tendência antissocial. Ele traz como precisamos considerar que, nesses casos, a pessoa tinha algo que, para bem ou mal, a estruturava e a sustentava no mundo e por algum motivo isso é perdido, e que os sintomas aparecem como forma de sinalizar que tem algo errado acontecendo. Reforça, trazendo casos de suas vivências profissionais, como é necessário dar espaço para que os sentimentos de raiva e a sua agressividade apareçam, em um ambiente seguro e que sobreviva a essa destrutividade, oferecendo também contornos, continência e limites. Ao contrário, um ambiente repressor embota e convida a criança ou adolescente à não existência.
Durante sua fala, Ricardo vai acolhendo e dialogando com as questões e relatos dos participantes, acerca de suas experiências, envolvendo, entre outros assuntos, o papel da escola no olhar para adolescentes em conflito com a lei, a relação com o sistema judiciário, o lugar da família, o fenômeno de patologização de adolescentes e as possibilidades de atuação profissional: como sustentar o investimento em um adolescente onde se vê poucas perspectivas de rompimento com a lógica infracional?
Ele também atenta para a importância de criar espaços seguros para que a criança ou adolescente possa dizer o que representa para ele essa família, para que o profissional compreenda do que ele foi separado, que envolve outras representações internas possíveis da mãe ou do pai, para além da versão que violou direitos. E que um dos principais pontos da teoria antissocial é o fator esperança e o perigo de a criança ou adolescente perder a esperança de resgatar aquilo que foi perdido. Muitas vezes, o gesto infracional indica que a esperança de recuperar algo que lhe é de direito ainda existe, mesmo que o caminho que encontra para demonstrar isso não seja socialmente bacana e aceitável. Ele reforça que, enquanto profissional, é preciso ter clareza que não se pode mudar o mundo, mas sim identificar algumas questões e direcioná-las, reconhecendo o outro e sua história, para que ele também possa se enxergar.
Ricardo finaliza apresentando as principais intervenções, resultados e descobertas de sua pesquisa-ação com adolescentes em conflito com a lei em Heliópolis, na qual analisa histórias e desenhos construídos por eles e que deu origem ao seu livro. Ele relata, a partir de falas desses adolescentes, como o crime, muitas vezes, é visto como a única maneira que eles encontram de ingressar no universo urbano e que é necessário se criar oportunidades e alternativas para que não precisem infracionar para que se sintam parte da cidade. Ele encerra a oficina, fazendo a leitura de um poema e, mais uma vez, trazendo a voz desses meninos e meninas.
Confira o vídeo com a oficina completa: clique aqui.