O que está por trás de uma situação de violação dos direitos de uma criança ou adolescente? Quem praticou a violação? Quando se pensa em uma criança ou adolescente que sofreu algum tipo de violência ou que se encontra numa situação de desproteção, o senso comum nos leva, através de um olhar desatento, a atribuir a responsabilidade somente aos pais. Essa primeira impressão pode nos levar a pensar que o acolhimento e a adoção seriam as melhores ou únicas soluções para proteger meninos e meninas que tiveram seus direitos violados. Mas o ECA nos explica que não são esses os primeiros caminhos.
O artigo 101, § 1º, explica que o acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta. Trocando em miúdos, a Lei nos diz que o acolhimento não tem um caráter permanente e, de acordo com o artigo 19, não deve se prolongar por mais de 18 (dezoito meses). Além disso, o acolhimento deve ser uma exceção, uma medida rara a ser tomada somente em último caso. Segundo as Orientações Técnicas: Serviços de acolhimento para as crianças e adolescentes (2009),
Destaca-se que tal medida deve ser aplicada apenas nos casos em que não for possível realizar uma intervenção mantendo a criança ou adolescente no convívio com sua família (nuclear ou extensa).
Para que este princípio possa ser aplicado, é importante que se promova o fortalecimento, a emancipação e a inclusão social das famílias, por meio do acesso às políticas públicas e às ações comunitárias. Dessa forma, antes de se considerar a hipótese do afastamento, é necessário assegurar à família o acesso à rede de serviços públicos que possam potencializar as condições de oferecer à criança ou ao adolescente um ambiente seguro de convivência (pg 23).
Para que possamos compreender melhor o que significa fortalecer, emancipar e incluir socialmente as famílias, o artigo 101 do ECA nos ensina que antes de se pensar em acolhimento ou colocação em família substituta (adoção, guarda ou tutela), precisamos adotar outras medidas protetivas: orientação, apoio e acompanhamento temporários à família; matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.
Vale destacar que o ECA estabelece também, em seu artigo 23, que pobreza não é motivo para que uma criança ou adolescente seja afastada de sua família. Em outras palavras, a família deve antes da hipótese de acolhimento receber todo o apoio possível. O Estado deve oferecer as condições para que saia de uma eventual situação de pobreza, deve lhe oferecer acesso à rede de serviços públicos que permitem exercer seu papel de proteção e cuidados. Se ainda assim, se mantiver uma situação de violação de direitos, a criança ou adolescente poderá ser encaminhada pela autoridade judiciária para um serviço de acolhimento.
Se o acolhimento de fato se mostrar necessário, o artigo 101 do ECA nos diz ainda que o principal objetivo dessa medida de proteção é viabilizar, no menor tempo possível, o retorno seguro da criança ou adolescente à sua família de origem ou extensa.
Talvez você se pergunte: puxa, mas se uma criança ou adolescente precisou mesmo ser afastada da sua família, seria este o melhor lugar para ela voltar? Para encontrarmos essa resposta, precisamos antes responder outras perguntas. Quem são esses pais? Quais são seus nomes, suas histórias de vida, seus sonhos, suas necessidades e aflições? Que dificuldades encontraram para cuidar e proteger seus filhos? Na maioria dos casos essas informações nos farão perceber que as famílias de origem também tiveram seus direitos violados e por isso não encontraram condições para cuidar e proteger.
A maioria é composta por mulheres pobres, negras, com vínculos familiares e comunitários fragilizados ou rompidos, com moradia precária ou inexistente, que vivem uma situação de insegurança alimentar. Trazem no corpo e na alma as marcas da violência de gênero, do racismo, da rejeição, abandono e exclusão. São mulheres e homens que também precisam ser protegidos, acolhidos, amparados.
Se fizermos as perguntas certas e estivermos abertos para ouvir genuinamente todas as versões que nos forem narradas, descobriremos que não é possível ajudar as crianças e adolescentes sem ajudar suas famílias. Descobriremos que não podemos criminalizar uma mãe ou um pai por serem pobres. Descobriremos que não podemos julgar quem passou por tantas experiências duras. Descobriremos que só será possível transformar a realidade do acolhimento no Brasil se fortalecermos as políticas públicas que asseguram os direitos fundamentais aos cidadãos que se encontram socialmente desprotegidos.
Se conseguirmos, portanto, desvelar as inúmeras situações e condições que culminaram na situação extrema de acolhimento, perceberemos que essa medida de proteção exige a realização de um precioso e complexo trabalho com as famílias de origem, cuja missão será a superação das situações adversas ou padrões violadores que levaram ao afastamento da criança e/ou adolescente.
O trabalho de fortalecimento e emancipação das famílias de origem pressupõe, acima de tudo, a preservação dos vínculos familiares. Dessa forma, os serviços de acolhimento devem garantir e incentivar visitas regulares das famílias, flexibilizando e planejando os horários de acordo com as possibilidades de cada uma. Nessas visitas, devem se sentir respeitadas, acolhidas e tratadas com dignidade. Devem sentir que ali é um espaço de apoio, cuidado e proteção; e não de julgamento e fiscalização.
Os serviços devem promover a participação das famílias na rotina da criança ou adolescente. Essa participação pode acontecer através da organização das festas de aniversário de seus filhos e de outras datas comemorativas, da participação em consultas médicas e reuniões escolares, da preparação de um almoço de domingo, da hora do banho, de passeios culturais, de oficinas de artesanato e cultura nas quais as famílias de origem transmitam seus conhecimentos. Além disso, sempre que possível, é desejável que as crianças e adolescentes passem férias e feriados na casa de seus familiares.
Esse convívio regular favorecerá a reintegração familiar quando esse momento chegar. Mas, e se esse momento não chegar? Mesmo quando os profissionais da rede de proteção empreendem todos os esforços para as famílias se fortalecerem, sabemos que ainda haverá situações em que as crianças e adolescentes não poderão voltar para as suas famílias de origem.
Esse delicado contexto exige reflexão: será que a destituição do poder familiar é indicada para todos os casos? Será que para as crianças maiores e adolescentes com poucas chances de adoção não seria melhor continuar convivendo com seus familiares ainda que não possam voltar a morar com eles? A sensação de pertencimento a uma família e convívio, mesmo que irregular, com seus familiares talvez seja, em muitos casos, melhor do que o vazio simbólico deixado por uma destituição do poder familiar.
Quando a destituição do poder familiar se apresenta como a alternativa que responde ao melhor interesse da criança ou adolescente, podendo assim ser encaminhada para uma adoção, é preciso envolver de maneira cuidadosa pais e filhos nesse processo de decisão. Tanto os adultos quanto as crianças, respeitando suas idades e capacidade de compreensão, participaram de conversas e reflexões sobre a situação familiar? Todos entendem o que está acontecendo? A opinião de todos foi considerada? O que cada um pensa a respeito da possibilidade de nunca mais poderem se ver?
Precisamos sempre exercer a empatia e nos colocar no lugar que quem está vivendo essa situação: se um filho estivesse prestes a não poder nunca mais conviver com seus pais o que sentiria? Se um pai ou uma mãe estivesse diante do risco de perder o direito de ver seus filhos, possivelmente à sua revelia, que sentimento carregaria? Uma vez que a decisão judicial for formalizada, não seria cruel e violento demais simplesmente impedir que pais e filhos voltem a se ver? Um corte abrupto, sem despedida, realmente beneficia ou protege alguém?
Essa separação definitiva exige respeitar o tempo que os afetos precisam para ser olhados, acolhidos e elaborados. Pais e filhos merecem viver o luto que a destituição do poder familiar traz à tona. Pais e filhos têm direito a uma despedida. Precisam de rituais que os ajudem a lidar com um sofrimento que qualquer ser humano teria dificuldade de superar: a dor de perder alguém que amamos. Não há receitas prontas para a realização desse ritual, cada um pode decidir como gostaria de se despedir. Desenhos, fotos, cartas, objetos e presentes são maneiras de guardar lembranças concretas uns dos outros.
Quando um acolhimento tem início não se sabe qual será o seu desfecho. A reintegração familiar estará sempre no horizonte, guiando as ações de toda rede de proteção, mas nem sempre ela será conquistada. No entanto, tão importante quanto o encaminhamento final são os processos realizados junto com as famílias de origem, crianças e adolescentes durante o acolhimento. Ainda que a reintegração familiar não se mostre possível, poderemos ter nossa consciência tranquila quando tivermos a certeza que fizemos tudo que era possível para uma determinada família, quando tivermos certeza que ela foi tratada com o toda a empatia, respeito e dignidade que qualquer pessoa merece quando enfrenta o momento mais difícil de sua vida.
Por: Debora Vigevani